Misérias de um porfiado
corta o cigarro pela metade.
guarda a outra para depois.
corta seu próprio cabelo.
no lixo do vizinho
o jornal do dia anterior.
só usa o sabão no sovaco das camisas que lava.
batiza o café pronto com mais água quente.
desliga o radinho de pilha nos comerciais.
frita que frita até cansar
o mesmo óleo.
bicarbonato de sódio
na escova de dente.
sabonete fininho de gasto
gruda no novo até soldar.
faz a barba até o barbeador
cego fazer sangrar.
guarda pão na geladeira
para durar.
raiz no copinho de água
em dias faz crescer
a cebolinha para reutilizar.
bolinho de arroz na janta
se sobrou na semana.
na segunda o feijão forte
na sexta sopa do feijão.
o dobro de água
no suquinho em pó.
apaga a luz na casa toda
brincando de cabra cega
reduz a conta por pagar.
faz de um copo de pó
um litro de leite em pó.
a cueca nem pensar
só quando amante chegar.
de um cadáver de frango
faz uma morgue de variados pratos.
bico, olho, crista, pata e pele
grossa sopa quente.
palito de dentes usado
de novo para depois.
semana ganha
quando da amiga
ganha cesta básica.
Receita do sebo
quando da amiga não
ganha cesta básica:
3 Dostoievski: 2 frangos
4 CDs: arroz e feijão.
6 Machados de Assis: café e leite em pó.
7 volumeis de Proust: a conta do telefone por perder.
Receita com estantes vazias:
no desjejum: Fé
no almoço: Esperança
luxo na sobremesa: Indignação cívica.
na janta: sexo a sós.
na TV: sono e enjôo fora de foco.
Dorme nas horas vagas
e sonha nas outras.
Pertinaz, se enternece
com os animais que sonha ter.