[Ao Volante do meu Carro, num dia de Chuva]
[Passeiam estes meus olhos de cão molhado da chuva]
Bairro amineirado de Penas do Desterro, casas dos anos 30, 40 e depois. Nos jardins, pinheirinhos, pés de manacá, rosas miúdas, espadas-de-são-jorge, brancas dálias, margaridas, e a dama-da-noite que aguarda o fim do dia para começar a trescalar mistérios de alcovas [fora da minha vista, um galo canta num quintal: um flash de lembrança da fazenda].
A rua comprida entardece no tédio do domingo, e a Natureza, que hoje não está para excessos, faz cair uma chuva mansa, encharca o mundo devagar...
A mulher de ar ascético, nem velha, nem nova, segue pela calçada com sua sombrinha azul-claro esparsamente gotejante da chuva lenta. Leva uma bolsa que deve conter costuras, retalhos, retroses de linhas, agulhas, ou o quê? A proximidade da igreja lembra-me que a sua bolsa poderia também conter um missal com capa de madrepérola.
[O mundo nada me deve, apenas acontece-me; eu não deveria estar a seguir esta senhora de ar casto, que caminha pela calçada da rua de um bairro antigo, curioso dos seus ares e dos traços de vida que ela leva naquela bolsa a tiracolo].
A água chia nos pneus de meu carro enquanto eu olho aquela mulher nem nova, nem velha, nem feia, nem bonita; apenas uma mulher, com modos dos anos 50, mas viva, bem viva, pois leva uma bolsa que eu não posso saber se, além das costuras, contém um missal com capa de madrepérola.
Essa mulher — quantos amores teria tido? Um, dois, três... pela idade quase indiferenciada que aparenta, teve tempo de ter vários amores; ou terá tido nenhum? Será que o seu sexo secou, emurcheceu sem jamais sentir um gozo? De viúva, ela não tem cara, dá ares de solteirona; vai ver, ela anda por aí, cheirando a igreja, e ungida de água benta, ainda há gente assim...
E chove... e chove... A mulher de ar ascético dobrou a esquina, chegou a uma casa com um jardinzinho chinfrim. Parado na esquina, observo-a: ela deixa a sombrinha molhada aberta no pequeno alpendre, e em seguida, tira a chave da bolsa, gira-a na fechadura, entra, rápida, e sem dar por mim, sem cuidar que estou a merecer um olhar, fecha-me a porta na cara, mas sem bater!
Sorte que ela não me viu segui-la, a chuva confundiu-lhe os sentidos normalmente argutos [sei que ela os tem assim, apurados pela vida solitária]; poderia bem tomar-me por um maluco, um malfeitor, ou um cafajeste tão ordinário que segue espiar senhoras de ar casto, num dia chuvoso como esse [garanto que eu não sou nenhum cafajeste, Posso até afirmar que sou sublime...].
Dobro a esquina, passo em frente à casa dela; vinda dos fundos da casa silenciosa, uma luz fraca côa-se pela vidraça da janela que dá para o jardim. Será que ela é sozinha? Se ela jamais teve sexo, só poderia ter filhos adotados... se os quisesse; mas não é comum uma solteirona adotar filhos... ou é? Será que vive com parentes, talvez outra irmã solteirona... Ou será que ela chora de solidão? Se ela é só, quantas panelas, que comidas terá para o jantar? Depois de comer, será que vai assistir à TV, ou vai costurar? E se ela não for uma costureira solteirona? Mas é sim... leva todo o jeito de ser!
[Afinal, que estranha língua é essa nossa que faz soar solteirona, solteirão, com chorona, chorão, solidão?]
Sigo pela avenida, a chuva me embala o pensamento; penso naquela vida de santa de oratório, escorrida à-toa, cheia de voltas caprichosas, feito rio de planície... Nunca vi esta mulher antes, nada sei sobre ela; e o que me importa a vida dessa mulher? Jamais saberei nada sobre sua vida, jamais saberei o que levava na bolsa, jamais saberei o que ela fazia na rua, numa tarde chuvosa de domingo.
E se eu soubesse, o que faria com tal informação? Nada, com certeza! Por que pergunto pelo que não deveria me interessar, ou, no mínimo, não me diz respeito? Sei que, nesse meu olhar angustiado, na visão da figura dessa mulher num dia chuvoso, há uma solidariedade injustificada, por certo; pois solidarizo-me com o que suponho ser, sem jamais saber se de fato é! Solidarizo-me com aparências, vestígios — sou louco!
A mulher teria plena razão de me julgar maluco, de ter medo de mim, se descobrisse o meu olhar interrogante caindo sobre sua figura: só um maluco ao volante, num dia chuvoso, ouve uma música de Paganini no CD do carro, enquanto espia uma senhora de modo ascético, nem nova, nem velha, nem feia, nem bonita, com ares dos anos 50, levando uma bolsa Que poderia conter... Ah! Chega! Chega!
[Penas do Desterro, 11 de fevereiro de 2007]
[Excerto do meu diretório "Agora - 2007"]