Lilás
Não escrevo nenhum réquiem
à foto do meu perfil
Me ajoelho, apenas
e agradeço pelos traços
pela foto
pela alma que um dia me tocou
que um dia me sorriu
me encantou
me cuidou
e me ensinou
como se deve guardar o que se ama
fosse um grão
uma pedra
um braço
um rio
uma flor
- Menos de manacá!
ela brincava
ela dizia e se ria
de o manacá não ser flor
mas apenas porque eu tanto gostasse
porque eu me desajuizasse
por manacás
ela brincava
lilás
sempre lilás
conseguem ver os olhos?
leiam os olhos
entrem pelos olhos
deitem sobre os olhos
e se esqueçam
eu busquei em cada gaveta
esse repouso
essa cura
em cada álbum
em cada canto da casa
eu busquei a foto de minha irmã
e me vieram histórias
e me vieram noites
e cânticos
e roupas
cheiros
faces
beijos
afetos
madrugadas
e manhãs
eu amei como se deve amar
eu amei o que Deus intuiu que fosse de perfeição
numa manhã que fizesse demais azul
numa manhã que fosse de um sol calmo
de uma brisa que nem se notasse
de um verde que gritasse às pedras
o bem de todo aquele mundo multicor
eu amei aquele dia
que deve ter sido uma eterna manhã
quando homem nenhum odiou
quando homem nenhum se propôs ao verbo
e o silêncio se fez em preces surdas
e absurdas orações de glória
àquela que vinha me fazer dormir
eu amei aquele dia
quando homem nenhum desamou
quando homem nenhum quis ser maior
quando homem nenhum ofendeu
quando homem nenhum esqueceu
a criança na calçada ao lado da rua
da rua ao lado da casa
da casa ao lado do abismo
do abismo ao lado de um lago
do lago ao lado de um outro lago
mais fundo, mais seguro até que o abismo
que a rua, a casa e a calçada
e as mãos do homem
que naquele dia não esqueceu
Mas eis que Deus dormiu
e se esqueceu da mágica de fazer almas iguais
e manhãs!
Bêbado
ordenou-Se trazer de volta
aquela flor
e que perfume havia!
e que lilás!
Deus não saberia mesmo fazer coisa igual
Ele tem o meu perdão