«Voz do mar, mysteriosa;
Voz do amôr e da verdade!
- Óh voz moribunda e dôce
Da minha grande Saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte...
»
(António Botto, in 'Canções'
)
*







PROCURA-ME JUNTO AO MAR…
 

Quando me quiseres encontrar
Procura-me junto ao mar…
Aqui te espero
Aqui te sonho
Aqui te procuro
Neste meu mundo
De um azul profundo…
Quero voar
Nas asas da esperança
Na manhã que vai chegar
Num recomeço brando …
Vestida de branco
Adormecer ao relento
Sob cálido manto
Embalada pelo vento
Em carícia calma
Que toca a alma
Com seu lamento…
Quando me quiseres encontrar
Procura-me junto ao mar…
Aqui me perco e me encontro
Na imensidão
Que invade meu coração
Nas cores e nos aromas
Nas vagas abertas
Nas horas incertas
Em que anseio tocar as
e
s
t
r
e
l
a
s
No murmúrio de um verso
No enlace de um desejo
Na aurora de um beijo…
Quando me quiseres encontrar
Procura-me junto ao mar…
Aqui te espero
Aqui te sonho
Aqui te procuro
Neste meu mundo
De um azul profundo…

 

Ana Flor do Lácio







«Da vida não quero nada / De tudo me hei de esquecer...»
 
* António Botto, grande poeta português, tão injustiçado na vida e tão injustamente esquecido na morte...

Foi amigo pessoal de Fernando Pessoa, tendo traduzido, em 1930, as suas Canções para o inglês. Morreu atropelado, em 4 de março de 1959, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana (Lido) no Rio de Janeiro, onde  se encontrava exilado para fugir às perseguições homófobas de que fora vítima pela censura e pelo regime do ditador português Oliveira Salazar. Pouco tempo antes de falecer, o poeta havia sido saudado, com todas as honras, na Academia de Letras do Rio de Janeiro (Jornal “Correio da Manhã” 03.02.1956 – Rio de Janeiro) com discursos de João Neves Fontoura e de Manuel Bandeira. Foi acarinhado por amigos intelectuais: Pompeu de Souza, Olavo Bilac, Macedo Soares, Horácio de Carvalho, Vinícius de Morais e Dantom Jobim.

É certo que o Brasil não lhe ofereceu apenas glórias. Também não lhe poupou desgraças. Botto foi sempre um homem sensível à miséria social. Em seus poemas podemos encontrar solidariedade com a dor e infelicidade alheias, o que lhe trouxe alguns dissabores. A sua realidade conjugada com um envolvimento social difícil deprime-o a ponto de proclamar a revolta interior de forma algo violenta: «Levanta-te Rei D. João VI, e vem presenciar este novo campo de concentração para os que trabalham. Os outros, os magnates, esses arrastam correntes de ouro pelas ruas da capital desprezada, cheia de lixo e covas onde se podem enterrar os pobres» (BNL- espólio de AB – cota E 12/63).
António Botto, um poeta português que o Brasil conheceu e recebeu com todas as honras, e no Brasil morreu. Portugal nunca reclamou o corpo de seu filho.

E apenas no dia 29 de Outubro de 1965 regressou à pátria. Manhã radiante de sol aquela em que, de um avião da Varig, descarregaram a urna com os seus restos mortais em Lisboa. Doze anos e dois meses após a sua partida, regressou aquele que a pátria expulsou, reduzido ao nada das tábuas de um caixão. Começou, então, o derradeiro ato do seu drama, oficialmente encenado pelos representantes do Estado, através da Educação Nacional e da Cultura, alguns familiares e amigos, e dois ou três jornalistas.
Diz o Diário Popular, da tarde desse dia, que depois das formalidades alfandegárias o féretro seguiu para a Igreja da Encarnação, etapa fúnebre inexistente, pois ficou na alfândega entre embrulhos e malas, à espera de despacho para um cemitério, conforme noticiava o Diário de Notícias do dia 30: «Os despojos de António Botto foram sepultados no Cemitério dos Prazeres [onde repousam] ao lado de Fernando Pessoa, de João Villaret e de outros amigos de toda a vida», para sempre supunha o repórter na sua boa fé. Afinal não tinha havido igreja nem sequer enterro pois nessa tarde, na primeira página, o Diário Popular tratara de informar os leitores que o funeral continuava «por não se fazer» tendo apenas saído da alfândega do aeroporto «para ficar à guarda de um cemitério lisboeta». Tão depressa se entendessem as diversas entidades seriam organizadas cerimónias fúnebres com «o expressivo nacional que o grande lírico do amor indiscutivelmente merece».

Sermão? Missa cantada? Bandeira nacional? Discursos e condecorações? Uma incógnita para um programa que começava mal.

Pasmem! As autoridades demoraram um ano e treze dias a organizar as cerimônias.
O desrespeito pela memória do poeta a todos indignava. Sobre a sua pessoa desapareceram as notícias e das ossadas já quase nem rastro. Há quem diga que foram colocadas numa arrecadação do cemitério, outros - por decoro - concedem-lhe o direito a uma gaveta anônima.
Com o tempo a história tornou-se absurda e começou a dar origem a pressões que expunham ao ridículo as representações oficiais.
António Botto, até depois de morto era incômodo! Mas não foi esquecido. Amigos como o Aníbal Contreiras, Mário Azenha e José Galhardo, presidente da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais, não deram tréguas às autoridades forçando-as a uma decisão definitiva.

Na verdade eles não sabiam mais o que fazer. Molestados com a situação chamaram a Câmara para os ajudar e o município decidiu conferir-lhe, não uma medalha pelos bons serviços literários prestados à pátria, mas um gavetão escondido no cemitério do Alto de S. João. Escrevia o Diário Popular sobre esta aventura póstuma: «Perseguido na vida - uma vida de malfadado destino - António Botto sofre ainda, depois de morto, esperando - como que esquecido - mais de um ano por uma derradeira morada...» (Diário Popular, Lisboa 11.11.1966).

No dia 11 de novembro de 1966 recolheu à morada que lhe foi dada, com a modéstia de quem havia escrito «Da vida não quero nada / De tudo me hei de esquecer...».
O sol brilhava sobre as colinas de Lisboa quando começou a cerimônia. A urna seguiu acompanhada pelas tais autoridades em ar solene, escritores, intelectuais, gente do teatro, familiares e um reduzido número de admiradores e amigos. Depositaram os restos mortais no gavetão 1952 da rua 17, escondido por detrás de altos jazigos, com a singeleza da inscrição:
«À memória do poeta António Thomaz Boto», com um só tê, respeitando o seu pedido numa carta endereçada do Brasil a George Lucas, a propósito de mais uma edição de Canções: «Não ponham Boto com dois tês, já me pesam»

(Texto adaptado: António Botto, Vida e Obra. Dissertação de mestrado em Literaturas Comparadas Portuguesa e Francesa, séculos XIX e XX – Lisboa 1994.  Maria da Conceição Azevedo dos Santos Fernandes

O drama do poeta encerrava-se, enfim, na singularidade do título de O Século Ilustrado: «Um poeta arquivado numa gaveta» quando, dizia, gostaria de ter ficado ao lado dos artistas no Cemitério dos Prazeres. Esta não era efetivamente a terra prometida mas a de um destino amargo que nem a morte lhe soube dar com a dignidade merecida.
«Quero morrer em beleza», pediu numa das suas Canções, mas não foi possível, António…
Ana Flor do Lácio
Enviado por Ana Flor do Lácio em 14/07/2012
Reeditado em 15/07/2012
Código do texto: T3777870
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