Hoje não tem poesia

Hoje não tem poesia

nem vento soprando

as folhas rubras do inverno

nem as horas lilases passeando pela tarde adamascada

Hoje não tem estrelas tiritando

no frio campo do céu

nem crianças brincando

na rua onde os sonhos aguardam,

brincando de esconde-esconde,

pelas risadas e a liberdade

que sobe da terra pisada por pés descalços

Hoje não tem janelas abertas para o dia

nem cataventos girando efêmeros silêncios

nem chuvas para levar nosso barco de papel

Hoje não tem a alegria perfumando o dia antigo

nem raios de sol a falar de lagos e plácidos ribeirões

nem cacheados anjos

nem pássaros mensageiros

nem nuvens esquecidas pelo sol de inverno

Hoje não tem a sombra verde

que deita-se das folhas do abacateiro

não tem jardins,

não tem flores

Ficou no ar somente o vermelho cortante

do tempo em que vivi entre as areias do sonho

que o vento arrastou em silêncio para longe dos meus olhos

ficou a saudade do mar e das rendas desfeitas

feito os meus sonhos um dia

Morreu a tarde levada pelo sopro da maresia

Vicejou a noite tal qual a página negra de um livro

orvalhada de pontinhos gotejados em poeira azul

Hoje não tem poesia

avivaram-se as fogueiras

queimou-se o Tempo

fechou-se os olhos

perdeu-se o rastro da vida no manto antigo do engodo

E o coração estremece quando

acordam as flores na brisa dourada da aurora

de um dia que não nasce,

mas pulsa,

vermelho,

cambiante como a solidão

deslizando no céu que ainda carrega a noite purpúrea

em silêncio...

Hoje só há o instante,

um átimo de segundo que quando se vê já é passado

tecendo a vida

e desfazendo-a

guardando nas estrelas o momento

do passo inútil

da boca seca

do choro visto no espelho

dissovendo-se na melancolia

da ausência insofismável dos teus olhos

E hoje é tudo o que há

a ausência feita de espera

o poema impressentido

a noite sem madrugada

o beijo gelado esperando que a vida arda

Ouve-me!

Estou indo embora

O sol poente no mar

molha a face vermelha de um roto céu de agosto

já quase primavera

que espera

a improvável noite

a improvável flor

os improváveis barcos

o improvável amor

pois hoje não tem poesia

que, absorta, esgueira-se pelos espelhos desfocados,

e desliza cambaleante pelas reentrâncias do dia

onde navegam os versos e os movimentos

em sete naus de fogo e de eternidade

As andorinhas não sabem que são poesia

A semente não sabe se vai poemar

nem se vai sorver dos olhos da manhã o orvalho

e a lágrima que roça a tua pele com este gosto de mar

Ouve-me!

Estou indo embora

sem as sementes e sem porto,

sob um céu sem andorinhas

nem vento soprando

sem incendiado horizonte

sem alguma voz que desminta

que hoje não tem poesia

A tarde é um ouro só

uma saudade só

brincando de ser vida

(teu beijo se exila em mim

e o poema recomeça assim)

Hoje não tem poesia

nem vento soprando

as folhas rubras do inverno

nem as horas lilases passeando pela tarde adamascada

Conta-me uma história, amor,

de rouxinóis e encantamento

que hoje estou triste

Conta-me uma história, amor,

que hoje não tem poesia