SAPATOS NOVOS
SAPATOS NOVOS
O mendigo bate a cabeça na porta
e grita: Deus! Mas a porta não responde
e Deus tem por norma não falar (faltar?) aos homens
que são tolos como portas onde cabeças se esfolam
à cata de Deus.
Estou cá, eu, sentado com sapato novo
ombros de touro, olhando o mendigo em desespero
a berrar como um touro sentindo a mensagem
de morte nas mãos laborosas do magarefe.
EU SOU UM HOMEM, tenho sapatos novos
(muito embora me roam os calcanhares)
e isso faz de mim o homem que não sou,
aquele que debate-se por dentro
pensando no que pensarão os amigos
ao vê-lo conversando com um mendigo
na Central do Brasil.
Ele está desesperado e eu com medo
de que me achem ridículo.
Eu tenho sapatos novos e sou ridículo!
Ah, Deus mudo, como os sapatos novos me tornam ridículo!
O mendigo bate na porta da oficina que não abre as domingos
que é dia sagrado para descanso dos homens.
O desespero não é lógico como o cansaço dos homens que se cansam
aos domingos. Ele ataca na esperança de que alguém
abra a maldita porta que não se abre e Deus nada fala aos homens.
Estou cá com meus sapatos novos a falar com o mendigo
após terem ido dormir os amigos: que ridículo.
O mendigo agora tem um nome, Carlos Alberto Santos,
e ter um nome já principia a fazer dele um homem
(Se disser aos amigos que falei com Carlos Alberto Santos, perguntar-me-ão
perguntar-me-ão o que respondeu. Se disser que falei com o mendigo, torcerão os rostos e me julgarão ridículo. Tempo dos adjetivos)
Ele tem pai, mãe, endereço e vontade de ser um homem,
com sapatos novos.
Procuro leite na padaria: é para um amigo.
Mas não há leite ma geladeira, como se ela soubesse que é para o mendigo.
Aliás, não só o leite falta nessas estrebarias. Falta tudo.
Tudo congelado na geladeira dos homens de sapatos novos
que são limpos de corpo e alma
e não batem com a cabeça desgrenhada
na porta de uma oficina que não abre aos domingos
e, quando abre, melhor fosse fechada,
posto ali não se consertar a compreensão dos nobres
que usam sapatos justos, e eu tão podre nos meus sapatos novos.
Mandei minhas esperanças nas hondas hertzianas.
O nome do mendigo na bolsa do carteiro,
Desespero em forma de telegrama: localizado
seu filho Carlos RioPTdesesperado precisa muito sua ajudaPTligar urgente 2212877 falar GeraldoPT
Mas em Embú, São Paulo, à rua Marquesa de Santos, 4
parece não morar José de Azevedo e Olga Ferreira de Souza;
de S. Paulo não chega resposta de pais ansiados.
Aos 28 anos ele se arrepende e quer voltar.
Arrependido aos 28, Meu Deus!
Mas não responde, nem aos mais humildados.
Agora, tardezinha de segunda-feira sem resposta
o que posso fazer é pedir a Deus que esmoreça
o coração de pai/mãe que não respondem
às pancadas da cabeça do filho na porta
de aço de uma oficina sem sentido.
Aguardo que o pai telefone e eu lhe diga:
-Ele precisa de ti. Ame-o na volta! E o pai o ame no regresso
como se sacrificasse todos os bezerros do universo
pela sua ovelha dantes perdida.
O que posso fazer é crer que o poema de amanhã
será uma homilia. Senão, Senhor,
não saberei mais erguer a cabeça tendo os pés
dentro desses sapatos novos
que ontem pela manhã preenchiam minha vida.