RELÓGIOS
RELÓGIOS
Os anos passaram mas as horas não passam.
Não há como retroagir
Como entrar em contato com o barco
Que arredonda ao longe
Velas enfunadas
E vai-se.
Sou o embarcadiço atrasado
A baixar a mão lentamente
De seu aceno impotente.
Fiquei no cais e à bordo
Acontecem coisas e o mar
É sempre intempestivo.
Agora é tarde
E resta andar pelas ruas
E alamedas que levam ao porto
Observando os casais que descem
As escadas e, ao pé delas,
Já pariram seus filhos e estão velhos.
Vou caminhando pelas ruas tortas
Habitadas pelos mouros da estiva
Nas janelas postam-se meninas
E basta um olhar, zás, são matronas
Solteironas e, olha novamente!
Já descarnam e vão às covas
Mas não passam as horas.
Participo, nos bares, a todos que conheço
Que os anos estão passando
Sobre horas iguais.
Os bêbados concordam,
Emborcam mais um copo
E partem. Espero ser
Enxotado pelo dono da venda
Posto não haver coragem em mim
Para abandona-la.
Durmo ao relento e conto estrelas.
Os albergues estão repletos de atrasados.
Conto estrelas e oiço murmúrios na madrugada.
Mulheres passam apressadas com suas coisas
Que vento forte as empurra ao horizonte quadrado?
Cogito, existo e conto estrelas.
As mulheres passam, mas não as horas
Evito olhá-las para não ver o tempo célere.
O tempo come as paredes das casas.
Dentro, noites de cataplasmas.
Homens esfarelam-se aos poucos
Sem nunca embarcarem.
Faço coisas e gestos que sinto tê-los
Executado há muito!
Muito tempo atrás n’outras horas como essas
Magoantes.
Mas não posso dar-me a melindres,
Arriscar-me a sentimentos.
É preciso mãos rápidas
Olhos sãos e coração arredio
Para escapar salvo de dragões e temporais.
É sempre preciso estar pronto para quando no mar.
Trago meus pertences a tiracolo
São tão poucos que os carrego sem peso
Onde chego estabeleço meu reinado
Enterto as crianças, conserto casas.
Olho o mar em busca do barco
E desapareço par’outras paragens
Raramente acrescentando algo à bagagem.
Falta-me algo e sinto pontadas no peito
Se fosse homem de leituras
Dominava algum império
Assentava praça
mas não bastam sofismas
para estar liberto das lancetadas
impiedosas no peito e nas costas.
Falta-me algo e as horas não passam.
Junto ao cais, algumas pedras avançam
Adentrando no mar.
Lá, as gaivotas descansam.
Aproximo-me delas e fico em seu meio,
Quieto, estátua
Observando o ir e vir das aves d’água.
Sem ter iguais a quem me reunir
Espreito o barco e visito as aves
E assim passam os anos
As horas são as mesmas.
Com o tempo dentro de mim
Devorando minhas esperanças
De que aqui, um dia, o barco atraque.
Nada faço
Não construo barcos
Para investir contra o vento.
Apenas aguardo o regresso
Vivendo de tormentos.
Vejo mulheres e filhos,
Pais e avós,
Gaivotas e crias
E nada faço,
Apresento. Apenas espero
Que um dia o tempo ultrapasse o horizonte
As horas vertam de meus olhos
E jorrem
Abandonando-me
Que já não suporto represar os anos
Que passam em horas iguais
A essa
Quando aceno a nada além do cais.