AVORRAÇAR
AVORRAÇAR
Tarde morna de cinco horas.
Anús avorraçam sobre a cerca
de arame farpado
à qual me recosto,
desconfortado pela aspereza do mourão.
A cerca separa minha terra da tua.
Eu e os anús somos iguais,
despossuídos do sentimento de posse.
A cerca é apenas um elemento a mais
acrescentado à natureza pelos homens.
Imagino Karl Marx recostado,
assim como estou, nesse alicerce capitalista:
dá-me vontade de rir.
Sacudo-me internamente
enquanto os olhos vigiam os anús
brincalhões sobre a cerca, séria,
inconsciente de seu papel político
na tarde morna de cinco horas.
À cerca recostado, escrevo minhas
palavras para mim,
desimportando-me a história do homem
que cessa nessa cerca
que separa minha terra da tua
minha mão da tua, teu coração do meu.
As palavras seriam mais contundentes
capazes de sangrar fundo, internoconscientemente,
se os homens quisessem entender
a linguagem do homem,
se fossem homens menos geométricos
e deixassem de construir cercas
-Que separam nossas terras
e unem nossas incertezas-
que não são linguagem nenhuma
que todas as línguas tornam-se babel
aos pés da cerca.
Eu e os anús não acalentamos sonhos
de dias melhores ou amanhã diferente.
Sequer sonhamos.
Conscientizo-me do quanto sou improdutivo,
de como eles são inúteis
perante as cercas construídas
para dar vazão às existências;
percebo o quanto contrasto com a cerca
que é razão humana pura.
Vejo-me pura desorientação.
Minha tristeza é tanta
que às seis horas os anús se recolhem,
restando este homem apalermado
recostado à cerca desconfortável
tentando sorrir.
Homem que queria avorraçar
como se fosse o anú que é
sobre cercas, muros,
sem pensar.