Comboios III

Não tenho mais tanta fome de outros corpos, outras almas.

Esse ofício vão de dizer coisas, dizer coisas, dizer coisas.

Esse comércio de palavras e carinhos, às vezes não me dá prazer algum,

Só me faz falta.

Meio copo de cachaça, uma vida mais simples e sábia.

Não me acompanha mais essa enorme inquietação urbana.

Esse caos programado de um pecado maior.

O que me agrada é olhar pelas janelas.

Ver a rua acontecer na doçura das pedras polidas,

A moça nova, pálida e distante.

O velho raro, seu tamborete e um cigarro.

Exato, me reconheço.

Saber o valor ao invés do preço,

Sentir de perto o calor em vez de inventar um fogo alheio.

Esse disco de Al Jarreau estalando sobre a pickup Technics.

Esse copo de pinga ruim e a noite estreita se esgueirando pela porta.

This is your song. Yeah!

Ele diz.

Muito desse viajar é sentir .

A estrada que se estende em minha frente, tem a imponência que lhe cabe e o poder de sedução que lhe foi adquirido.

Muito, mas muito mais do que eu vi, ainda é uma porção pequena do coração.

Toda realidade é um excesso.

Uma busca por enxergar-se.

Vivemos todos em comum nessa viagem.

Por isso eu falo por outras bocas e sinto em outros corpos.

Que não são meus, mas fazem parte dessa coisa maior que não sei o nome.

Isso que não cabe nos adjetivos.

E que fala alto aos que tem ouvido.

Quanto mais vontade eu tiver.

Quanto mais força eu encontrar nas sutilezas.

Mais de mim darei ao mundo.

E o mundo me dará o que eu merecer.

Mais perto de Deus eu hei de estar, porque mais perto de mim estarei.

O que quero dizer:

cada alma é uma estrada, cada ser é um rio corrente e a água é viva.

Sinto-me diverso por ser eu, e as múltiplas chances que me são ofertadas, é parte desse universo.

Dessa pequeneza diante da natureza.

Dessa arrogância que nos impõe sermos homens.

Já não quero empreender a luta que é entender.

Nem a força bruta que é explicar.

Por mais que se caminhe, muito mais haverá de ser estrada.

Por mais que se lave a cara, muito barro, muito chão, nada, nada.

Entre a vontade e o gesto,

O lugar de cada coisa é o hiato.

Quando me lembro.

Aliás, por que me lembro?

Adormeci, vivi e sonhei.

Agora divago manso sobre o que eu quiser.

Tenho propriedade sobre as coisas que me são.

Minha extravagância não é, senão, querer viver.

Se você está a me procurar, faz bem saber:

também estou.

Minha hora tão sonhada chegou.

Quando dois estão dois, e quando dois são um, é aonde vou.

Kaike Lamoso
Enviado por Kaike Lamoso em 15/06/2012
Código do texto: T3725417