Outro dia

Entre uma palavra e outra, há (a) poesia

Entre o mar e a onda, a (há) poesia

Entre o beijo e o arrepio, há (a) poesia

Entre a dor e os que estão sofrendo, a (há) poesia

Entre o sonho e a madrugada, há (a) poesia

Entre o vento e a areia, a (há) poesia

Entre as estrelas e o céu nu, há (a) poesia

A poesia abre as janelas úmidas das manhãs

ainda encobertas de véus e neblina

exala seu perfume nas flores

que balançam ao vento

e a vida inteira é poesia na página em branco

pergaminho na garrafa trazida pelo mar da alma na noite súbita

e a poesia é vida inteira nesta ilha

que declama seus versos onde há só ausência

versos que jamais escrevi

versos sôfregos sobre o balcão

onde repousam os livros que não li

livros onde entre uma linha e outra

entre uma frase e outra a (há) toda a poesia encantada

a me fazer feliz no instante antigo e quedo

as minhas mãos espalmadas esperam outras mãos

nos olhos cinzas de um minuto calcinado no tempo

vivos em mim

como nos quintais de minha infância

eu ficava esperando o céu se desmanchar em vermelhos

entre o céu e o vermelho, há (a) poesia

e a noite se iniciava insurreta

por sobre as montanhas ao longe

e os telhados das casas da minha infância

e espalhava-se pelo instante inefável dos meus olhos

a procurar por você dentre os poemas inacabados

dentre as estrelas

que já nasciam como sílabas de um verso e de um tempo

onde as palavras buscavam-te tontas de beleza e de sentidos vários

a poesia, tão antiga quanto a palavra, silenciava

e em silêncio acolhia minha alma e fazia voar borboletas

decompondo as cores dos jardins onde sonhava a lua

entre o lamento e o desenho da lágrima, a (há) poesia

há (a) poesia quando estou só

e a tarde se demora

e com as mãos sobre o rosto balbucio teu nome

lentamente

voam os pássaros em direção às arvores onde dormirão

os teus carinhos

voam os passáros em direção ao passado

para além da tua ausência

e do meu medo

e o poema se diz sozinho

como uma voz no deserto

que a vastidão perpetua

tatuado nas longas noites que inventei para te esquecer

(...)

Palavras...

as palavras doem

carrego-as por que é noite

longe, longe, longe...

é noite

já não escuto teu nome quando olho para o silêncio e a lua

já não me alcança o punhal pungente das tuas palavras

longe, longe, longe...

no horizonte que morreu e que voltou

amadurece o tempo

para nascer um outro dia