CORVOS BEBADOS
Por que um dia ele viu as garrafas e os rótulos o chamaram para si
E ele foi com todas
Foi com cada uma delas
Líquidos inebriantes que o faziam esquecer
(quantas coisas ele terá realmente esquecido?).
Quando percebeu realmente que podia beber?
Talvez jamais saibamos ao certo
Quantos vazios em sua mente
Ordenanças loucas pairando sem destino
Mobília de vodka e conhaque para preencher o tempo
Ouvidos surdos e noites perdidas
Quantos não foram os lamentos e clamores de JC?
Quantas foram suas noites perdidas?
Quando ela decidiu que precisava de ajuda?
Talvez naquele dia interminável de viagem a cidade de origem dele?
Dia de armas loucura e ameaças
Talvez antes
Quando foi que ela percebeu que não podia?
Que estava sozinha?
Abandonada no universo curto e perigoso de sua casa
Esquivando-se dos socos e golpes, protegendo as filhas e a irmã.
Quantos golpes ele terá acertado?
De quantos ele lembra?
Até que bravatas e desejos de “macho” se fazem presentes e espumantes no copo enquanto ele observa sua cunhada
Tirada de sua inocência brutal e ferozmente terá ela gritado?
Quantas pragas não lançou contra ele ao longo da vida?
E JC? O que terá sentido ao segurar nos braços o primeiro filho da irmã em plena a consciência do pai?
O que terá dito as próprias filhas?
E quando vieram as outras?
Torrentes de crianças nascidas impuras na imundície do adultério forçado
Desde cedo aprendendo a desviar dos golpes e a desviar dos socos
Quando foi que elas cansaram?
Que tamanho tem a angustia silenciosa do sofrer de uma filha?
Ela explodia
A mais velha numa torrente confusa de palavras cretinas e fugas mal contadas
Até que a longa garra dele a alcançasse de novo
Mas o domínio dele já era fraco e a seu próprio modo hoje a mais velha já e´liberdade
Nas amarras doces de um casamento
E a outra?
A filha mais nova
Quantas vezes terá tramado a própria fuga ou a morte do pai?
Que exemplos terá tirado da noite em que viu caído o corpo daquele homem na sala da casa?
A sua volta olhos cegos e ouvidos surdos ignoravam e não contavam nada
Os dedos frouxos de sua própria mente escorregando perigosamente a beira do abismo
Na noite do disparo na boca do pai
Nas garrafas e paus embaixo da cama
No silencio pesado da mãe
Da tia
Da casa povoada de irmãos ilegítimos
Quanta loucura e perda
Ela abriu as portas para sorver a ilusão louca das ruas
Baforadas e fungadas vigorosas e alucinantes permitindo esquecimento
Passageiro
Inútil à dor sempre volta
A realidade não muda
Que ordem e que ótica as coisas tem depois disto?
De que maneira ela realmente sentiu o internato?
A clinica?
As doenças e bebedeiras?
As brigas e mortes?
A distancia...
Onde estava sua mãe?
Provavelmente presa a seu próprio horror
Debatendo-se entre paredes quebradiças
Do que terá Le servido a curta fuga para o litoral?
Para a tutela de outros?
De nada eu receio...
De nada...
Em sua casa ele prosseguia guspindo sangue e perdas
Ele com ulcera, maldito salivando dores sangrando.
Tomara que morra...
Mas não morria...
E JC ali sentindo-se moribunda fingindo conformismo
Mentindo aceitação
Seus braços fraquejavam no abismo
Assistindo a vida de outros simples e limpa
Distancias seguras das agruras do álcool
Ela também já tentou sua fuga
Em tempos idos...
Mas ninguém foge de todo
Nem sempre é possível escapar das trevas
E os corvos a alcançaram e trouxeram de volta
Mumificada, embalsamada em vida.
Condenada a prostrar-se
Suspeito que JC apenas espera
A única fuga de que pode lembrar-se
A única possível
Das janelas sem vidros de sua vida deformada escapam suas filhas
Próximas e distantes
Seguras e perdidas
Por mais que ela tente... abandonadas
Como ela...
Por ela...
Á própria sorte
Uma ulcera? Um acidente? Um tiro? O tempo?
Quem sabe qual deles?
Possibilidades...
Qual deles?
Uma fuga...
Uma fuga...
A ultima que conhece e pode agarrar-se
Uma fuga
JC aguarda.
Tenebrosos dias estes de que fui testemunha distante, mas a fuga já aconteceu a algum tempo pobre JC... O tiro ganhou as possibilidades hoje você esta livre e espero que finalmente agora (livre dele) estejas mais feliz. Se finalmente depois de tantos anos escrita dou luz a tua historia é por que certas coisas não podem jamais ser esquecidas.