água doce

www.pporto.blogspot.com - "Patricia Porto - Sobre pétalas e preces".

a criança que ria do rio vindo,

que ria do tempo indo,

ela não cresceu.

Ela está lá no rio rindo,

e no meu rito

é minha rota de passagemembolada,

minha sombra engolida na rede.

a criança do rio que ri é o tempo,

e não há sapatos que caibam em seus pés.

Não há floresta que a faça crescer.

a criança rindo do feito mágico

rindo de todo juízo afinal,

com seus dentes de leite,

com sua boca e sorriso.

a criança é a vingança contra o tempo,

contra o abuso, o desespero, a maldição,

contra a triste desesperança da violência,

contra o assalto da alma à espreita.

a criança me leva de volta pro todo, ela é a inteira,

está livre dos dogmas e das vigilâncias sociais que inventaram

o verniz da aparência.

a criança é a vingança maior contra a opressão,

contra a ordem da casa, a fundo, o silêncio do lodo,

contra os antídotos que não te deixam sonhar.

a criança soprou palavras no meu ouvido,

dançou sobre minhas perdas mais sentidas, afagando meus lutos.

Um canto: a criança é tudo o que tenho, nada mais... nada mais...

...o rio rindo, o rio vindo, a criança e o riso, o viço, a risada

- tudo, tudo o que tenho...

a criança que ria era cria do rio,

criada a crença do pouco siso,

era a vingança contra a ascendência da intolerância,

do preconceito e de todo o peso da mão da mãe,

do pé pesado do pai sobre o soalho gasto.

a criança é a vingança sobre a inquietação da noite sem fim

contra os medos do quarto trancado, das trancas da solidão de fora ao claustro.

contra a face deixada para bater. Que batam! Ah, seus sentidos não sabem culpa...

e então a criança mostra seus dentes, seus dentes que mudam,

que morrem e renascem do novo.

E ri tão alto, tão alto, tão alto, tão longe, tão absurdo...

E segue o rio e o rio é o seu íntimo.

a criança conversa com a natureza das palavras:

poesia, estrela, amplidão, céu, poeira iluminada...

e habita a fragilidade de existir e perdurar;

sabe ler os vestígios na travessia, as ruínas sobre o terreno acidentado.

Sobre os corpos afogados trazidos no espírito -

é a coragem de esquecer.

a minha é menina e mora nas entranhas,

solta do meu útero a fazer cócegas nas minhas fraturas expostas.

Ela ri do rio e o tempo é tudo o que ela tem.

Porque já viu de tudo, porque sentiu de todos -

a criança tem os elementos da terra para fortalecer os grãos

contra a estiagem.

Ela ri e sua vingança contra o ódio é a lavoura, a terra encharcada,

a lama e a limpa do rio, o tempo vindo no rio,

o rio rindo de dentro,

vivendo e morrendo - a-co-lhendo...

...vivendo e morrendo - de tanto rir.

Patrícia Porto

Patricia_Porto
Enviado por Patricia_Porto em 05/06/2012
Reeditado em 05/06/2012
Código do texto: T3707043
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.