Monólogo

Há um silêncio monólogo

nesta tarde de céu pesado,

ar parado

tarde cerzida ao chão

o cinza embebendo as horas desordenadas

desenhando pensamentos

pedaços de caminhos

segundos de um passado

um jeito de abraçar

de segurar a mão

premonições

e segredos

a lembrarem de ontem

lembranças de um sorriso

de um amor que não foi amor

a tremer-me a fala

a secar-me a boca

a dissolver-me a alma

a me chamar pelo nome

a molhar-me os olhos

espelhos da permanente busca

seria melancolia

ou um desespero surdo?

superficialidade da vida?

o imponderável da vida?

talvez ...

talvez

a madrugada do mundo

inscrita num céu negrocinzento

no mar represado no horizonte e

que torna-se um pouco de mim também

e deste "mar" onde mergulho

e ouço disparates e fragmentos de lucidez

posso pressupor o jardim de sons e cores

onde dormem as luas que vigiam os dias

debaixo das pétalas das flores,

no musgo verdinho das pedras,

no pólen das flores,

no vento deitando as hastes do capim,

entre as sombras das margaridas

e o sussurro das franjas do bambuzal

o outono nasce na primeira folha que cai

no dourado da tarde,

num luar perfumado

que queda-se num lago

pintalgado de estrelinhas

onde o dia bebe o pôr do sol

e os ventos de outono esbatem o dia pelas pedras frias

ao longe arremata o farfalhar do céu uma lavandisca

o gesto da chuva fechou os olhos do dia

depois o vento cansou de andar

fez-se este silêncio monólogo

o céu permaneceu pesado

e escuro

e depois a chuva que não veio

deixou a lua clara

em pleno meio dia

azul

puro azul

azul aceso de borda a borda do céu

e que guarda na manhã

o friozinho deste outono

o brilho intenso de um sol

soprando

e se encompridando

nos passos longos das areias das praias

atordoando o outono com os raios

que o rio arrasta

e finge cristais na luz muda das águas

E a manhã de outono

se debruça inteira sobre a janela

leve, como uma pluma,

com a leveza da transparência

da luz que acende o céu

que ia chover

e que, cansado de sono e de espera,

deixou de ser o que era

e resolveu não chover