A ficha
Na infância encheram-no de regras.
Caminhava enquadrado.
Respirava em redoma.
Tudo controlado nos mínimos detalhes:
Dieta saudável –
“Nada de doces, querido”.
Amiguinhos –
“Pretos e pobres, nem pensar, meu amor”.
Estudo –
“9,8? É pouco, meu filho”.
Aulas de música, desenho, inglês, espanhol.
Todos os dias.
Rotina perfeita.
Um, dois, um dois...
Para o sucesso dele.
Brilho e esplendor!
Medalhas e prêmios:
Melhor aluno da sala.
Melhor aluno da escola.
Melhor em TUDO.
E tudo sob controle.
Pais perfeitos –
Família tradicional, com seis medalhas da Inconfidência:
Juízes, promotores, deputados, médicos...
“Ele vai ser médico”, dizia o pai, que era médico.
“Será um grande neurocirurgião”, dizia a mãe promotora.
– “O melhor”.
Estudou nas melhores escolas.
Aulas de manhã e à tarde.
À noite, inglês e espanhol.
Sábado e domingo, reforço com professor particular:
200 reais a hora.
Enquadrado assim, chegou aonde tinha que chegar.
Tornou-se médico.
Nos pacientes via dinheiro, não pessoas.
Eram fichas, dados.
– Só.
Até que um dia ele também se tornou uma ficha.
Aos 36 anos, um derrame jogou-o na cama.
E da cama, para a cadeira de rodas.
“Para o resto da vida”, disse o médico.
Impossível!
Os pais não acreditaram.
“Meu filho, meu filho...”.
Ele via, ouvia e entendia tudo, mas não podia se mexer nem falar.
Num domingo cinzento, ele sozinho no quarto, alguém abriu a porta.
Era um ex-colega de faculdade.
Seu rival.
Segundo lugar em tudo.
Chegou bem perto da cabeceira da cama.
Olhou a ficha:
Dados –
Números, remédios, recomendações...
Seu histórico...
Tudo sob controle.
Depois, um leve beijo na testa do acamado.
Um afago em seus cabelos negros brilhantes.
Olhos nos olhos.
Sorriso doce, acolhedor.
Não eram rivais.
Nunca foram.
Vitórias? Derrotas?
Isso não existe.
São apenas aprendizes...
Amigos agora.
Na estância das provas...