Ana Célia
Ana Célia de manhã
Ela e os galos, a noite se acabando.
As poucas estrelas
Já não cumprem função no céu.
De perfume e cambraia
Da janela se vê o andar
Mole e automático
Que carrega Ana Célia ao trabalho
Desce a ladeira, devagar.
Daqui a pouco, entra
No trem, mil abraços
No caminho,
“A vida é apertada assim
Mesmo.”
Os cabelos bem cuidados
Não se deixa abater
Toda semana faz escova
E fala de sonhos com Iracema
Cabeleireira. Essa se perdeu
Muito jovem e seus olhos
Traz essa marca...
E evita lembrar de quando
Olhava pela janela e só
Via na vida gosto de hortelã,
E os homens de baciada
Amavam cada pedacinho
De seu corpo. Só não
Amava de cansaço,
Porque seu coração era
De varanda fresca.
Recorta a vida em troncos
Pra pode sobreviver...
Dé pé o dia todo,
Fazer sapatos pra grã-fino
Cada um melhor que outro
E seu salário compraria no máximo
Dois daqueles,
E tem raiva de Santa Maria
Que quando criança era linda
E dava tudo que pedia.
Fim de tarde, retorna
E um cheiro de adubo
Vem-lhe seguindo
Subindo a ladeira
De sua casa na
Rua Colto Pereira,
Ainda sem asfalto
Ana Célia
Pega na cintura,
E sente o que quase
Não se sente.
Não é o peso
Das compras
O cansaço de um dia de trabalho
Ou algum desconjuntamento
O que Ana Célia não aguenta
Mais é essa pobreza de amor.