O passado tem peso

O dia é pesado

Tão pesado como esse passado

Porque o passado

Tem peso, é matéria

Que não se quebra, é ferro, é faca

Afiada, é toda a estrada atrasada.

Não consumada. Nele tem

Doutor e homem rico

E toda sorte perversão, da fome

Das dívidas e das vergonhas

Profundas, bigornas

Um risco, um abismo!

Se pode sentir, se pode xingar

E nos pode matar...morte verdadeira

De enterro e velório

De saudade e retranca.

De fazer quem ama chorar.

Mata como matam os acidentes

De avião e de automóvel, as doenças e os assassinos.

Mata de sumir do mundo,

De nunca mais se vê

De ficar só num retrato,

Preto e branco pendurado na parede descascada

Apertada do corredor.

De ser enterrado a sete palmos

Morre-se de verdade.

Também se morre

Só de alma, tão verdadeira como a morte

da carne.

Morre-se de seu crescer

De não agüentar desvendar

O espaço que compõe um homem

Que dá o homem ao seu tamanho

Morre-se da capacidade de maturar

E ver a o mundo como um fruta

Madura deseja de boca desse homem.

Não se vê com os olhos

Mas se vê com a carne

Que é transpassada como

Um furo de prego na tábua,

Com muitas marteladas

Como o tiro do revolver calibre

38 que Zé Dantas usava pra matar os bois no matadouro

Na Fazenda Mírio Brígio.

E da espingarda que seu Ovídio usou pra matar dona Olívia

Naquela madrugada de 1979.

Como certas palavras que sai da nossa boca querendo matar

Que são tão afiadas como o dito passado

Que entram na carne e sangra:

Um sangue não visto, que como feito de brincadeira

Mas que existe.

Como existe esse céu, esse chão que eu piso

Esse rosto envelhecido tão antes da hora

Essa tristeza que não sara.

Essa insistência nas coisas de que já nem preciso

Essa vontade de voltar pra Bahia

De ser a aquelas pastagens, aqueles currais cheirando

A bosta de vaca.

Aquele céu cruel que banhava de vida minha meninice

Aquelas ruas de paralelepípedo feitas com paciência

E muito suor e a preço de banana;

Da escola Normal São Pedro, onde passou todas

As meninascrescidas da cidade.

De meu pai de minha mãe,

Que me abraçando me amava

Me dando comida me amava

Me batendo me amava

Que me expulsando da vida me amava.

E daquela vontade de saber o que existia atrás da serra da coroa.

Da vida tão boa que uma Rua Jacarandá Bastava.

Das lavadeiras naquela vida desgraçada cantando em grupos

Pra se consolar, pra se enganar.

Enquanto seus estômagos choravam, gritando ao céu um pedaço de banana madura.

Enquanto na casa de Juarez Fernandes comia o sumo

De um mundo delirado.

Esse passado é o infinito largado

Abandonado, incompreendido

Tudo que não foi visto,

Pelo seu tamanho, ou por se chocar

Como a pequenez daquele momento.

Que choca sua carga com o agora.

Esse eterno agora.

Todo dia, a toda hora, como uma descarga.

E fede como merda, como um esgoto a céu aberto,

Uma ferida que se infiltra como um verme

Na vida, é um berro na aurora,

Uma tampa de estrume

Sobre a beleza da terra.

Esse passado que não passa

Mas repassa, que não morre

Que vinga, que fere, que

Existe sempre, mesmo que morto

Mesmo que santo, mesmo que torto

Que volta de cara de

Afiado, curtido, melhorado, arrogante,

Pra baixo, me leva pra baixo,

Sempre pra baixo

Que engravida os dias

De um monstro esqualido

Que não nasce, que não se perde

Que se confunde com o útero

É útero é barriga é perna é braço

Os passos. O meus passos

Que me levaria

Que me tornaria.

E o povo girava,

Como se girava uma marionete

Girava em torno

Dessa terra crua,

E girava rindo e girava rindo e girava rindo

Sem saber que é girado,

Tragado, engofado,

Esgoelado

Que lhes deixa mais pesado

amedrontado

Mais triste e mais agoniado.

E mesmo depois de girado

Até ficar tonto

Com cara de bobo amarelado

Ria, pois nunca foi girado

Nem quando era criança

Porque não foi no parque,

Onde é pra girar as coisas

Que giram.

O olhar das crianças

Confirma o peso

Das coisas, da sujeira

Das coisas e da nojeira

Das coisas. Das coisas

Que queria ser, das coisas

Que queria aprender

Das coisas que não coisas

Mais apenas o vazio

Que lhe coloca mais no céu

Do que na terra

Seus passinhos

Eram guardados

Em sapatos repetidos

De pé em pé, gasto

Com buraco, que repete

Insistentemente tamanho

Do espaço. E ele, pequenino

É coberto de uma camisa

Feita de espinhos e vergonha

Sua mãos pequenas são insufientes

Pra lhe impedir a visão.

Que lhe aparece como um trovão

Que corre como um terremoto

Em cada lugar que pousa

Sua esperança,

Seu corpo magros

De pele cinza,

Não de cor, mas

De doença, de pereba

E falta de sabão. A pele

De rio, de córrego, de lixo

Que é jogado na beira do rio

Que tem a mesma água que bebe

Que cozinha, que se mergulha,

Que se diverte, que se confia...

Água, a mesma que desce das galerias

Do hospital de Itaranti, que ao longo

Do percurso se torna uma pele de rio,

Grossa, densa, uma manta silenciosa

Um cobertor

Que mais tarde se pregará na pele do menino

Que nunca saberá de onde vem tanto gosto

De agonia de coceira de noite de dia

Do furúculo que cresce na bunda

E nas pernas, ilhado de pus,

amarelo e vermelho pintado,

que mesmo que sarado,

não acaba, só transforma

em uma mancha preta

e branca, feia,

a pele do rio nunca morre,

vai ser uma pele estragada

um não da namorada

uma tristeza caída

uma fome enrustida,

uma porrada na auto-estima.

Essa pele não termina

Em lugar nenhum.

Está nãos mãos e nos pés

No rosto e na barriga e na pele de dentro

Como uma tristeza recolhida

Bem ali, no pé da barriga