Homem sem dono
O dia é pesado
Como se é pesado
O passado, porque o passado
Tem peso, tem medo, é matéria
Que não se quebra, é ferro, é faca
Afiada, é toda estrada. Que vem
Do infinito, que choca sua carga
Todo dia, a toda hora, como uma descarga.
E fede como merda, como um esgoto a céu aberto,
Uma ferida, que se infiltra como um verme
Na vida, é um berro na aurora,
É uma infecção que maltrata
O sol, as estrela e as flores.
Um tampa de estrume
Sobre a beleza da terra.
Esse passado que não passa
Mas repassa, que não morre
Que vinga, que fere, que
Existe sempre, mesmo que morto
Mesmo que santo, mesmo que torto
Que volta de cara de
Afiado, curtido, melhorado,
Pra baixo, sempre pra baixo
Que engravida a vida
De um monstro esqualido
Que não nasce, que não se perde
Que se confunde com o útero
Como a barriga, o braço
Os passos. O meus passos
Que me levaria, que me salvaria
Que me tornaria.
E povo dessa terra
Gira em torno
Desse cru, que lhe
Deixa mais pesado
Mais triste e mais agoniado.
O olhar das crianças
Confirma o peso
Das coisas, da sujeira
Das coisas e da nojeira
Das coisas. Das coisas
Que queria ser, das coisas
Que queria aprender
O corpo magro
De pele cinza,
Não de cor, mas
De doença, de pereba
E falta de sabão. A pele
De rio, de córrego, de lixo
Que é jogado na beira do rio
Que tem a mesma água que bebe
Que cozinha, que se mergulha,
Água, a mesma que desce das galerias
Do hospital de Itaranti, que ao longo
Do percurso se torna uma pele de rio
Que mais tarde se pregará na pele do menino
Que nunca saberá de onde vem tanta pele
Tanta agonia da coceira
Do furúculo que cresce na bunda e nas pernas, ilhado de pus,
amarelo e vermelho pintado,
que sarado, será uma mancha preta
e branca, feia, como feia é sua barriga
que tem verme, que é grande que parece
com os olhos, também grande, vazio
que não mostra a vida, mas o vazio
de vida, da barriga com fome, da falta de amor
de desejo, de ser, de merecer.
não sabe
Que o rio já passou na boca, no banheiro
Na merda, no hospital, na ferida,
E ele banha e ganha, e retoma
E traz mais uma ferida!