(In)transigência

"Tenho pena e não respondo.

Mas não tenho culpa enfim

De que em mim não correspondo

Ao outro que amaste em mim.

Cada um é muita gente.

Para mim sou quem me penso,

Para outros --- cada um sente

O que julga, e é um erro imenso.

Ah, deixem-me sossegar.

Não me sonhem nem me outrem.

Se eu não me quero encontrar,

Quererei que outros me encontrem?"

(Fernando Pessoa)

A noite nos pegou de surpresa

dois à toas, dois vagabundos

andando devagar, bar e mesa

saindo trôpegos pelos fundos

Fizemos um mapa de geografia pobre

norte, leste, faltou algo e nos perdemos

ficamos na bússola do passado que encobre

todo o sul e oeste que não temos

chapiscamos nas poças, a lama nos sapatos

como fôssemos mais que nossa cumplicidade

como estivéssemos tão somente gratos

por poder transitar na banalidade

de nossas solidões descabidas que cortam o peito

como facas pontudas e as setas de sebastião

como se jamais pudéssemos dar um jeito

na falta de espaço de nossa imensidão

saímos do beco para o claro da rua

e nossos olhos arderam pelo desacostumado;

dois vagabundos caminhando sob a lua

de uma cidade morta e de um céu abismado.