Antes que a flor morra em mim

Deixo para minha irmã a lembrança da primeira vez que vimos o mar,

a onda dobradando aos nossos pés

a alegria da areia

a bola colorida

globo terrestre

tão desprotegido o mundo em nossas mãos

Deixo as sensações e as respostas flamejantes do imponderável "Patinho Feio"

Deixo os gestos imóveis

as palavras que eram só carinhos

eram só ternura

aconchego

e mansidão

A lembrança dos quintais que já não existem mais

Deixo os passos a perguntar para onde ir

depois que a flor desabrochou no pequeno canteiro onde os cravos

pintam de branco e vermelho a pequenina vida em pétalas de uma poesia tirante a Deus

depois da aurora subindo pelas escadas cheia de sugestões para o dia,

depois da sandice da dor

Para Pingo deixo nos lábios o gosto da infância doce e curiosa

Deixo incessante no ar o odor da noite pintalgada de pequeninas contas azuis

Deixo os dias dourados pela luz dos fins das tardes de outono

Deixo o branco da espuma das ondas soando distantes

o mar imerso na noite de lua

amante

companheira

A voz da fonte marulhando na penumbra leve da noite que chega com seus olhos

O colo aconchegando as linhas de um poema

O beijo nu

O poema nu

o soneto em sua boca

Para meu irmão deixo um verso condenado ao silêncio abrasante das areias

Deixo esperanças e uma saudação a possíveis extra terrestres que, por ventura,

nos visitem em suas máquinas voadoras,

com seus poderes de deuses (quem sabe?)

e suas tristezas ocultas no enigma das galáxias que os abrigam

Deixo um raio de sol incendiado nas frestas do quarto

Deixo no antigo relógio da sala os olhos sem poesia das horas

Deixo barcos em meio à névoa dócil das manhãs nascendo numa praia de pescadores

Deixo o sorriso lavrado com a goiva da infância

Para Diva deixo a jóia perene das noites engastadas nos anéis do Lua Nova

Deixo um horizonte resplendente de cores de um arco-íris nascendo depois da chuva,

por sobre a Avenida Ipiranga

Deixo as noites bucólicas onde cantarolávamos Chico, Caetano e Gil

Mais uma dose da sinuosa conversa,

cicios

que a noite é todo o Universo na Teodoro Baima

Deixo, também, meus discos do Pìnk Floyd

e um grito atordoado que a cidade tenta abafar

E no silêncio que se segue ao grito eu deixo-lhe o meu baú da infância

rampa para meus vôos noturnos

pra eu não morrer de tristeza

constante no nevoeiro das lembranças lacrimejantes e eternas

Deixo para Bruno um automóvel sob a sombra de pelúcia do abacateiro

Deixo para Rafael os arabescos do mar que riscam em grafite os sóis poentes

Deixo para Simone a sede destas décadas irredutíveis dormindo entre saudades que as noites trazem de longe

Deixo o sabor do amor molhado na sua pele de urgência e carinho olhar suspirando um desejo polaco

e chorando um gozo com a inocência de um anjo

Deixo o afago que cingia meu peito entre as chuvas douradas dos seus cabelos

e onde ficaram retidas as canções ciciando as descobertas

dos sentidos que em fogueiras se faziam arder no corpo alvo

como uma gatinha ronronando meu nome pra ser saudade

Para Cida deixo este olhar esquecido na janela de um abril

a espiar pela frincha por onde seus olhos partiram sem volta

Deixo os mistérios que pode haver numa vida

e a vida mesmo acontecendo: mistério?

Deixo, na sua vida ausente,

nas suas tardes hoje tão sós,

as canções e os cantos gregorianos para alegrar sua alma,

para mitigar o choro amiudado dos seus dias

Deixo uma lágrima suspensa que ainda não aprendi em qual pedaço da nossa história eu devo guardar

Olho para você

o que sobrou de você

pergunto: por onde andará sua alma?

Caminhará campos floridos?

Pedras agudas e doridas?

Por onde andam suas tristezas?

Não choram nem riem

A vida carregando seu silêncio inconsciente

inexcedível se supera

Quando te libertarás, amiga minha, desta prisão surreal?

Lá fora, nos quintais, as borboletas já deixaram os seus casulos

indiferentes ao medo,

ao espanto da vida vista de perto

A vida a ser cumprida mesmo quando escondida nos seus olhinhos anímicos,

brisa soprando no bambuzal a dizer:

Senhor, tende piedade de nós!

Para Cláudia deixo os poemas de amor inacabados

Deixo a lágrima posta na face da memória

Deixo a semente e a possibilidade da flor

Deixo na flor as quatro estações dissolvendo-se nos orvalhos azuis de uma manhã de sol moreno

e nos braços abertos de Iracema a evanescência do abraço

Para Maria deixo cinco pétalas da flor que trazia nossas noites

Uma janela aberta

Um quarto em penumbra

A inexistência das horas nos nossos braços

Maria, eu nunca te disse, mas eu gozei naquela noite de lentos murmúrios

enquanto sussurravas teu amor de mulher com uma voz de criança

Maria, deixo para você, meus dedos percorrendo o teu corpo

teu cheiro de terra úmida,

teu travo de perdição,

teu gosto de mistério e segredo

Deixo, comovido, para meu pai

esta sensação de desamparo que está no âmago da minha vida

Deixo os erros do caminho por onde nós passamos,

um tão longe do outro

Deixo as pegadas prisioneiras na estrada deserta e árida por onde não andou o amor

Deixo o esquecimento do drama e a evocação do meu olhar triste qua ainda hoje vejos nos espelhos dolorosos e nestes gestos de barro a anotar, indiferentes, tudo que não fui

a minha palavra retraída

o choro escorrendo pela terra no meu rosto

Deixo para o meu pai o meu perdão

Para o Gera deixo a canção solitária da flauta transversal

O vento cheio de solidão

Solidão, tarde no cais

Solidão que me escuta

Solidão dos dedos brincando com as notas musicais

Deixo para minha mãe esta saudade sem entendimento

Esta pergunta dos meus onze anos: de onde vem tanta dor?

Mãe, meu riso nunca está onde estou

e a dor, porta da noite deserta, abre-se quando os dias chegam amedrontando

Deixo pra você, mãe, meu coração

aquele mesmo que eu tinha quando inundou em você o sonho infrangível da morte

Deixo meu coração de onze anos que um dia se calará

O sol da tarde confunde-se com os telhados das casas em Americanópolis

A rua era Maria como você, minha mãe

O choro é como um cativeiro que o tempo incongruente traz em seus ritos,

mãe

Pra senhora, minha mãe,

deixo meu amor,

só meu amor...

[que nada mais tenho de meu.

Não plantei árvore,

não escrevi livro

Deixo minha inquietude no enigma que é um filho

Deixo para o meu filho

uma rua de terra onde ele possa se trajar de barro e poeira

onde a bolinha de gude escorra ágil e certeira

e a pipa voe no céu

por entre nuvens que não se explica como é que já nascem poesia

uma rua que seja Maria

Deixo os céus verdes- azuis do Perí

Deixo ao meu filhos um lugar que não é meu

a estrela que não é minha e que apareceu bem em frente da minha janela,

deve ter sido o vento que trouxe,

e que trazida por ali ficou pipilando seus ares de madrugada

Deixo um navio no porto

no porto eu deixo um mar e uma vida por começar

Deixo uma mão que é a minha

pra quando ele escorregar

Deixo o desespero e a esperança

junto a um sonho

Deixo a nostalgia de agosto

e a fúria dos anos diante da existência

Deixo as poesias escondidas nas paisagens

vermelhas dos outonos

nas flores dormentes do inverno

no bulício da primavera

na inocente infância do verão

Deixo um beijo carinhoso

Um abraço terno e companheiro

Deixo o meu amor

e este jardim sem mourões e sem pecados de afeto

[e emoção

Deixo a todos estas cantigas inatas das aragens dos dias

que enfeitam as janelas e os batentes das portas das casas

onde em criança brincávamos e inventávamos a vida

Deixo a flor orvalhada pelas lágrimas de uma manhã que chora

a despedida de alguém

Deixo, por fim, este carinho incomensurável e misterioso que cantarola

o que eu, atrevidamente, chamei de poesia.