Cotidiano
Undécima hora, sol a pique,
suor no rosto, a mão, olhar cansado,
um quê de quem não tem o que perder,
um ar de quem tem pouco a ganhar.
Não há em seu semblante muita coisa
que se possa dizer que é marcante.
Não existe na face uma ruga
que não seja uma marca do viver.
Fraco, magro, amarelo, triste,
a perna enrijecida de uma artrose,
uma barriga grande, uma ascite,
dum banho uma esquistossomose.
O campo a lavrar, o milho seco,
a roça por colher, farinha crua;
o forno esquentou, coloca a massa
e mexe, mexe, mexe, sem parar.
E quem irá comprar?
O mundo é outro, agora, é negócio;
não tem aí muito jeito, não, mas...
e daí?
Vende a farinha, traz dinheiro.
O feijão secou, milho também.
Colhe mais a roça,
e dela faz mais farinha.
E vende, colhe o milho,
o feijão (o que sobrou da seca dura)
preto, pois o pardo murchou.
É duro.
Duodécima hora, ainda o sol,
a fome, a sede, o gosto
da comida na boca.
Na boca, feijão com farinha.
O sol se foi, o chão.
A rede rasgou ontem,
a esteira nova ainda coça
nas costas nuas ao deitar.
É madrugada. O galo canta.
O sol já vem. Levanta
e vai à roça.
A terra seca (ontem não choveu).
Milho, feijão, secos.
A farinha ainda crua,
o suor no rosto.
Undécima hora, sol a pique.