O circo
Ficou no campinho de terra dos anos 60/70 o circo
entre risos de uma alegria macia que enchia a vida do bairro
e que fluia no ar pelos remendos da lona esgarçada
Ficou nos longos pés do palhaço Pururuca
a jogar no público, assustado, baldes de confete
a expectativa de um banho de água que acabava em confetes
Como um gesto tão simples podia nos sacudir de tanto rir?
Ficou na face fascinante dos leões e seus rugidos
que nos prendiam às tábuas da arquibancada
o esquecimento das feras que habitavam a vasta pobreza
O domador e seu chicote de estalo que fazia qualquer bicho obedecer
o que dizer de mim
cada estalo eu me encolhia como se fosse em mim
aquele leão bem que podia ter se rebelado
para apagar de mim aquele sobressalto ao estalo do chicote
na escuridão entalada dentro de mim
estilhaçando o relâmpago nos meus olhos
Olhos girando junto com as motos no globo da morte
A voz, um fiozinho branco no coração apertado
em cada volta das motos
que se cruzam
e se perpassam
tão rentes
tão próximas
que a custo mantemo-nos nas arquibancadas
e ai de quem piscar os olhos
pode perder a manobra mais radical da tarde
pode perder a oportunidade de ajuntar no abismo do desconforto
o som da tarde rarefeito nos rumores dos motores
enquanto uma vida se faz aqui dentro divergente da que se faz lá fora
sob os lares fortuitos onde se debruçam as crianças nas esquinas do medo
Restam as arquibancadas dançando ao som da pouca bandinha
A respiração presa no vôo dos trapezistas
A tarde quente roubada à sensualidade das pernas das bailarinas
Moleque não presta
Moleque não pode ver pernas de mulheres nestes anos 60/70
E no final do espetáculo tinha as lutas de telecatch
Os Reis do Ringue
A molecada toda delirava com os golpes dos lutadores
O bem, o tempo todo, à mercê do mal
mas no fim, sob os olhos atentos dos leões e nossos,
o bem triunfava
A aquibancada delirava naqueles anos 60/70
Ficou no país do ame-o ou deixe-o um gosto de sangue
de membros quebrados a estocadas
Ficou nos caminhos manchados de pólvora onde gravitavam
fuzís e feras trajadas de ternos
qual varejeiras verde-oliva
Ficaram os porões escuros onde a vida se derramava junto com a água suja das latrinas
Nos anos 60/70 lutava o bem contra o mal sem se saber quem era quem
Lutava-se em nome da pobreza e da agonia
e os mortos daí resultantes não foram lembrados num fantamasgórico mistério surreal
como um período que não existiu
E a pobreza e a agonia, deitada em berço esplêndido, sonhava com futebol, carnaval e bunda de fora e cachaça
Não tinha tempo nem jeito para identificar e cinjir o brutal sono dos justos
Tudo um grande silêncio mantido sob as solas dos coturnos
um grito sufocado no capítulo da novela
Nos anos 60/70 vivíamos o nosso Gulag que mastigava e engolia pessoas inteiras sem deixar nenhum vestígio
Mas por que me comovo com estas histórias?
Tinha-se futebol o ano inteiro
Carnavais e mulatas que eu nunca namorei
A cachaça estava quase de graça
Por que sofrer se as manhãs e as tardes e as noites ordinárias traziam o aroma da brisa e os cadáveres não deixavam nem cheiro?
Houve uma tristeza nos anos 60/70 que só quando me afasto do espelho percebo
enquanto a arquibanda de miseráveis delirava naqueles anos 60/70
Ficaram nos anos 60/70 o meu sorriso de menino e a dor lancinante do facho aceso da ignorância nos recônditos da minha casa onde a tarde roxa se dissolvia na minha saliva e nas minhas lágrimas
porque eu chorei quando o chicote estalou em mim
e se esvaía lá no fundo a minha vontade de viver
Ficou em meu coração de 60/70 a dor que eu nunca soube dizer
a dor que eu nunca pude entender
e que ficou zoando dentro de mim
tonitruando nos meus dias e nas minhas noites
pulsando em angústia
delirando em poemas que eu não sabia
adormecendo na história do Patinho Feio
primeiro livro
que incendiou minha mente e deixou esta sensação de eu ser outro
e nunca mais eu fui o mesmo
e nunca mais eu me achei
nem nunca mais me deixaram dormir
agora cochilo sobre os joelhos
e ainda choro a outra metade da dor