ALMA FEMININA
Sou a moça do laço de fita apoiada na florida varanda
Aguardando o gentil cavalheiro acenar com seu chapéu.
Ao lado, delicados bordados e um leque de renda valenciana,
Tendo as mãos ocultadas por luvas de crochê e véu.
Sou a camponesa comprometida com a empreitada esperada
Aguardando iniciar a colheita de vistosos cachos de uva.
Ao lado, uma cesta italiana e uma antiga tesoura de poda,
Tendo as mãos calejadas pelo rústico trabalho de sol à chuva.
Sou a índia do guerreiro filho do pajé - curandeiro
Aguardando-o retornar da pesca do tucunaré e pintado.
Ao lado, balaios, uma rede decorada e fogueira a queimar no liso terreiro,
Tendo às mãos a raiz - mandioca, do beiju, o pão sagrado da oca
E do tradicional caxiri longe dos homens fermentado para em grandes festas ser ofertado.
Sou a negra da senzala e também da casa grande
Aguardando nova ordem do implacável feitor.
Ao lado, a lembrança de um filho vendido ainda infante
Ao ver no pelourinho um jovem corpo pendido já sem dor,
Tendo as mãos deformadas a acobertar seu rosto recém queimado
Pelas chamas do ciúme da sinhá do senhor malvado.
Sou a rapariga favorita do soberano que sempre a visita
Aguardando a chegada do senhor para o primeiro encontro do dia.
Ao lado, olhares arguíeis e palavras ignóbeis sem rima que o motim incita,
Tendo às mãos, entre uma piteira de marfim e uma vistosa bolsa de vermelho alizarina,
A utopia disfarçada em vestes de luxuosa china.
Sou a miserável mendiga da periferia, ‘moradora de rua’
Aguardando, como um vigia, o amanhecer de mais um sofrido dia.
Ao lado, um colchão de papelão e um vira–lata, fiel companheiro de luta,
Tendo as mãos arrumadas em gesto de súplica por um pouco, apenas um pouco, de comida fria e crua.
Sou a menina de tranças que se distrai sem ter noção do tempo
Aguardando chegar o tão esperado dia para ganhar um novo presente.
Ao lado, um mundo fantástico montado com diversos e antigos brinquedos,
Tendo às mãos o estimado ursinho de pelúcia, verdadeiro amigo e nunca ausente.
Sou a vó, sou a mãe e sou a filha...
Fui a primeira e serei a última.
Na essência da continuidade
Sou única!
(Elenize - 04 / 12 / 2010)