Uma carniça
("Une charogne", Charles Baudelaire)
Lembras da visão que tivemos, numa mortiça
Manhã de melancólico estio?
Na curva do caminho uma horrível carniça
Sobre o leito seco de um rio.
As pernas para o ar, como mulher lasciva
Entre fétidas transpirações
Ostentava de maneira lúbrica e aflitiva
O ventre prenhe de exalações.
Rebrilhava ao sol aquela indelicadeza
Como se a matura-la bem
Devolvendo centuplicada à Natureza
Aquilo que em si ela contém.
E o céu analisava a horrível carcaça
Como uma flor que se oferece...
Tão forte seu fedor na relva escassa
Que quase nos desfalece.
Zumbiam moscas sobre a podre barriga
Onde em bandos escuros e esguios
Vermes disputavam em uma viva intriga
Os restos reluzentes e frios.
E tudo ia e voltava, como negro vagalhão
Ou borbulhando transbordava...
Parecia haver do corpo a multiplicação
De tal modo tudo fervilhava.
E tudo recordava a melodia rotineira
Do vento e da água corrente
Ou de grãos que se agitam na peneira
Movendo-se metodicamente.
E tudo era já como alucinação imposta
Uma imagem que se nega
À tela branca que ao artista desgosta
E sua visão não entrega.
Uma cadela faminta nos olhava nervosa
Da pedreira não muito distante
Sonhando roubar à carniça malcheirosa
O seu bocado infamante.
E contudo tu serás igual àquele monturo
Tal qual aquele infecto horror
Luz dos meus olhos e do meu ser obscuro
Anjo meu, e meu amor.
Assim serás algum dia, diva graciosa
Quando por lágrimas banhada
Sob a grama e a vegetação luminosa
Fores pura podridão mofada.
Então diz, ó bela, aos vermes roedores
Que aos beijos te devorarão
Que guardei em essência teus amores
Na plenitude da decomposição.