Meu legado





Quando me for desta para outra,
desocupando este corpo alugado,
podem sem pudores passá-lo adiante,
caso sirva para algum fim ignorado.
Não penso em nada além de esterco,
mas vai-se saber o que será inventado....
Pode ser que sirva como lixo reciclado,
pode ser que vire sacola ou pano de prato.

Homenagens, quero apenas o justo.
Para um desconhecido pouco ilustrado.
Um Réquiem composto por alguém velho,
pois compositores novos são todos viciados.
Quem disse que estuprar a escrita de Mozart,
é ser um músico revolucionário?
Só acredito em quem envelheceu,
e sobreviveu à juventude e ao fracasso.
Pode ser uma peça para orquestra pequena,
mas me recuso a ser, mesmo morto, humilhado
pela sanha desafinada de quaisquer três tenores,
que enquanto cantam, fazem poses de calendário.

Peço que evitem o choro desnecessário,
pois o choro deforma a face e o ambiente.
Peço óculos escuros, pois não sou obrigado
a ficar imóvel vendo escândalo teatralizado.
Se possível não mecham em nada,
nem me cubram de flores e velas tristes.
Estarei morto e isso é fato.
Mas não me transformarei, com certeza,
num cartão de dia dos namorados.

Também não recitem meu poemas,
pois se os cuspi para o mundo, 
não os quero mais de volta.
Não há verdades ou ensinamentos alí.
Apenas é meu lixo que coloquei para fora.
E também não diga que sou foda.
Se morri não fiquei bom, nem virei heroi.
Será apenas um corpo que encerrou a função,
e não serei medida pra mais nenhuma vida.

Por fim, enterrem  tudo.
Meu corpo e os meus pertences.
Quero limpar minha presença do mundo,
pois ao sair, não quero ser chamado de folgado:
aquele que faz muita bagunça e ao partir
ainda deixa o lixo para ser recolhido.

Se possível me esqueçam, e tudo
estará enfim justificado.
Eu como fertilizante, na terra espalhado,
e as consciências tranquilas,
por não ser eu  nunca mais lembrado.