Cinzas
meu filho quer uma orquídea
e a manhã é cinza
pela estação fria
de tempo e espaço
ambos fora de mim
a mulher de bengala pede migalhas
os pombos passeiam entre as gentes
e o senhor sentado ao meu lado tem os olhos azuis
estupidamente azuis
a orquídea será de Aninha
diz meu menino
que quer a flor pra enfeitar
o cabelo negro de seu imenso primeiro amor
mas a manhã é cinza
e não há orquídeas na estação
vejo as gentes que voam
os pombos que riem
a mulher que migalha
e a estupidez azul
dos olhos do senhor de camisa amarela
teimando em se fechar em cinzas
e cuido dele
pergunto dele
lamento por ele a mochila no colo
a viagem que vai e volta
sempre e sempre e sempre
na mesma estação
desanimo meus dias por ele
que crê, sabendo mentir
que vai ao verde em viagem sem volta
não vai
ele me agradece azul
e azul a manhã se faz
me sorri uns dentes de fumo
e talvez me diga em silêncio
que lhe salvei aquela manhã
e que me deve a eternidade em gratidão
e tudo deve ser verdade
dali a pouco a serra
me seria inofensiva
o frio me teria nos braços
e eu talvez fosse um pouco mais feliz
réstias de azul me dançariam na mente
e o velho sentado agora ao lado
de alguém que talvez apenas lhe perguntasse as horas
talvez já se esquecesse do menino que também fumava
que lhe cuidava os olhos
e a quem lhe era devida uma eternidade de azul
E já não saberia de eu ter lhe salvado aquela manhã
e barganhasse aquela minha devida eternidade
por conta de nada, ou quase nada
carente, quem sabe, cansado de tantas estações
não se importasse em dividir o meu afeto
e devia ser meu o seu afeto
- eu já me perdia nas serras, longe -
daria aqueles meus olhos
a alguém que apenas lhe quisesse as horas
e partilharia o meu sorriso
com todas as gentes
me acinzentando o azul
meu filho quer uma orquídea
e seus olhos brilham