Ninguém

E se seu fosse outro

e não este

que cultiva na eternidade dos dias

perdas e danos tão banais

calúnias,

difamações,

desafetos,

sortilégios,

palavras nem sempre maduras,

as que me dizem,

as que não escrevo,

algumas de eternidade

poucas, bem poucas, as de eternidade

no mais das vezes é sempre o rame-rame rasteiro

o dá-me João a casinha

prelúdio para a canção estéril e monótona das cobiças corriqueiras

nunca,

nunca o que disseram de mim foi demais

E se eu fosse outro

e não este

que chora diante do poema

no qual me distraio e vejo Deus nas entrelinhas

e decomponho o céu

estrelinha por estrelinha

sentindo falta de uma noite na Rua que era Maria

onde a poesia não dormia

e entre os meus braços sonhava sonhos de heróis e vilões

com capas de gabardina roubada aos guarda-chuvas

e espadas de natais

E se eu fosse outro

e não este

que cala quando devia falar,

que fala quando devia calar,

a voz avara,

insaciável,

a voz desabitada,

orfã da verdade,

a voz,

encabulada,

se aquieta

morrendo dentro do que eu não escrevi

implora ante aos meus lábios

artes

fatos

sussuros

coisas outras que eu não vivi

pede a farsa

vestigio de estórias

se desfazendo e se refazendo na maledicência

das pedras dos séculos

E se eu não fosse outro

nem este

e se eu fosse ninguém

e ninguém tivesse razão

e ninguém morresse de tudo

morresse do enigma de estar vivo

numa ignorada direção onde os ventos

trouxessem tardes purpúreas

onde ninguém volta-se para si mesmo

esboroando-se tímido e compassivo

E se não fosse ninguém

nem um outro

se fosse só mascara e persona

dentro de algum espelho focal

imagem inacabada do amor

e da solidão quixotesca, insolente,

enfrentando moinhos de vento no meu quintal

Não,

não sei quem fui

ou quem sou

algo em mim ainda não nasceu

algo em mim espera (há anos, há décadas ou

séculos?)

alguém em mim me esqueceu

na infância

por entre o abacateiro e o galinheiro tão lentos

que ainda hoje passam na minha vida

olho para o céu e ainda vejo o mesmo céu de 1971

com suas estrelas do primeiro dia da criação

e os olhos negros de Pingo

e a sua doçura tão doce

que se arraigou em mim com seu carinho

de verão

e suas chuvas às quatro e meia da tarde

ficou em mim com seu jeitinho

e um inefável amor de verdade

Me esforço pra ser o que não sou

(pareço)

Procuro em mim algum fio de meada

(começo)

Com as mesmas palavras de um domingo de 1976

eu tento me iludir com esta voz antiga e longínqua

(recomeço)

Entre os meus versos falam de mim este e aquele outro

(desconheço)

Entro os sonhos, feitos de minúcias, a me devorar

(padeço)

De manhã levo meus folguedos de criança para tomar sol

como se a vida que tivesse passado não fosse a minha

(esmo(r)reço)

À tardinha o mundo me encara com duas pedras na mão

(mereço)

Não me interessa o mistério que permeia os aromas da minha falsa versâo

(esqueço)

Envolto no pasmo diante da vida que se acabará apascentada das minhas ilusões

(feneço)

Diante do imponderável do último dia ainda oponho resistência

(estremeço)

Aguardo...

Aguardo não o último dia, mas o próximo instante

e se ele vier

far-se-a luz na minha ignota escuridão

e me reinventarei num poema

serei outro

serei este

serei, intimamente, ninguém