Memória da pele
"Passagem da Horas"
Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
Fernando Pessoa
Memória da pele
Acordei de madrugada!
Bebi um copo d'água
Acendi a luz e perdi o sono.
Liguei o ar refrigerado
Peguei na gaveta do armário um moletom usado.
Engraçado como roupa usada
Lembra a pessoa amada no passado.
Por mais que ela tenha me machucado,
Por mais que ela me tenha ofendido,
Por mais que tenha me amado,
Por mais que tenha me traído.
Roupa usada me lembra a pessoa amada no passado.
Pensei nas coisas boas.
Naquele abraço apertado
Naquele bom dia gostoso
Naqueles beijos de língua
Atravessando o tempo
Deixando a boca dormente
Doente e sadia de amor.
O sono foi embora, e a dor de agora, são de lembranças!
E o que fazer quando elas vem?
Como apagar da nossa mente
O que está presente na memória viva da pele
E lutando contra o esquecimento.
Eu lamento, mas não quero mais lembrar.
Acho que a saudade foi invenção da minha alma em agonia
E da minha vontade de expulsar de dentro de mim:
O que sempre me alivia
Quem nunca me ofende
Quem sempre me defende
Quem só me compreende
Quem nunca me judia
Quem só me arrepia.
É o meu orgulho
É a minha alegria
É a minha emoção
É quem me salva da solidão.
É a minha essência
É minha transparência
É a minha semântica
É uma necessidade orgânica.
É quem me faz ressuscitar
É quem não me deixa naufragar
É quem me cura da gripe
É a minha Afrodite
É quem torna tudo possível
E faz de mim uma celebridade invisível
A minha poesia.
Tony Bahia
O poeta é um louco.
Ser poeta não é profissão que se apresente.
Gente decente tenta profissionalizar-se de outra maneira.
Mas as minhas mãos, para desencanto da família,
não são senão as operárias da poesia.
Olga Maria Scuoteguazza
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores
E são-me simpáticos os homens inferiores
Porque são superiores também.
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles.
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta, que ela exista para que tenha razão de ser.
Beijo na boca de todas as prostitutas,
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos,
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é a razão de ser da minha vida.
Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vício,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).
Fernando Pessoa
Eu também sempre acabo nos braços da poesia,
quem sabe ela
- mesmo sendo assim tão infiel,
brilha, cativa, oferece-se
aos que a ela vierem -
seja mais leal
do que tantas e tantas pessoas e a própria vida.
Almma