foi bem ali onde eu nasci (EM CONSTRUÇÃO)
olha, eu nasci bem ali...
lá atrás daquele morro
bem à nascente daquela fonte de água doce
onde se pegava água em grandes potes de barro pesado
em rodilhas sobre a minha cabeça
onde se pegava feixes de lenha pra acender o fogo e esquentar o café de manhã bem cedinho
pra comer com cuscus feito de milho que ficava de molho da noite pra o dia, passado no moinho, peneirado e cozido em cuscuzeiro de barro
ali, bem perto daquele riacho onde passavam águas vermelhas tingidas pelas folhas podres de mangueiras e de cajueiros que no fundo do riacho estão...em silêncio no cio do tempo
lá onde eu nasci ainda tem canto de grilos, coaxar de sapos em noites de lua cheia, cantigas de cigarras...
ali perto daquele mato onde tem anus, sabiás, bem-te-vis e saracuras
calangos...
eu nasci bem ali perto de cavalos que pastavaam como meninos a brincar em noite de lua cheia
nasci perto daquela lagoa onde tinham muitos peixinhos onde eu aprendi a nadar com a minha teimosia de menino tímido...
nasci bem ali...
pertinho daquele monte onde tem pés de caju, pés de coco, pés de mangas, jabuticabeiras, goiabeiras, jenipapos
sabe, onde tem muito casa de ichus, onde tem mel do bom?
foi bem ali bem pertinho daquele curral onde se tira leite das vacas bem cedinho...ao cheiro de estrume molhado pela chuva da manhã pois é.. .foi bem ali onde eu nasci
onde pela manhã se colhia folhas pra fazer chá e flores cobertas pelo orvalho da madrugada pra enfeitar e perfumar o oratório cheio de imagens herança da familia em noites de rezas dia primeiro de novembro dia de todos os santos
ainda ouço as mangas espadas bem maduras, pintadinhas doce como mel caindo bem cedinho ao lado de cajus vermelhos e amarelos com castanhas que seriam assadas ao fogo e comidas quentinhas depois de quebradas com pedras e pedaços de paus
foi ali naquela areia branquinha que eu fincava os meus rastros com os meus dois irmãos em buscas de outras frutas frescas caídas ao chão...
cocos, cambucás, araçás...
e foi naquela areia branca, fina e limpa com cheiro de sol quente a arder e higienizar os seus grãos que minha mãe desenhou com gravetos as primeiras letras do alfabeto, me ensinando o be-a-bá...
me alfabetizando poeticamente sob os crivos de sua estética de mulher do sertão
ali bem perto daquele canavial com canas doces e moles e macias...onde dei muita ração as vacas do meu pai
bem pertinho dali eu nasci...
nasci ali bem pertinho...onde se pescava piabas pra se comer bem secas ao sol e assadinhas no fogão à lenha...com farinha e pimenta em prato de barro
bem pertinho dos cantos dos passarinhos que ainda cantam sem gaiolas, do radinho de pilha a cantar ave-maria e rezer o terço às seis horas da noite onde meu pai e e minha mãe nos reuniam pra contar os "lodaços" ali bem perto dos cavalos sem cabrestos, dos jegues a relinchar...das tanajuras a celebrar as chuvas das tardes frescas de verão
bem ali pertinho dali onde eu nasci, onde os beija-flores zumbiam em sua missão...os coleiros, lavandeiras, assuns pretos, nambus faziam festa após os camboeiros de setembro naquele sertão
de caatinga com unhas-de-gato, gravatás e macambiras
nasci bem perto das plantações onde se colocavam espantalhos pra sua proteção...ainda me lembro dos "dijitoro" onde eu também semeava e plantava com os meus pés descalços no chão a acariciar a terrra fofa e molhada, arada com muito carinho e devoção, onde depois era a festa da colheita com muita alegria e poesia, e se cantava e se dançava e todos se davam as mãos sob o rigor do sol quente de verão e muita poeira ao "beatar" o feijão na arupemba ...
nasci perto das malvas, dos maturis, das espantas boiadas, do pés de licuris e de trapíá forrando o chão com seus frutos amarelo-quase-ouro-dendé
foi bem ali onde eu nasci...
veja!!!
de longe!!!
mire
olhe lá!!! está vendo aquele pé de juazeiro? pendendo pra esquerda de tanto fruto?
foi ali onde eu nasci
pertinho daquele pé de jenipapo!
ao lado do pé de caixão
bem pertinho daquela cacimba de água doce de minação
pois é, foi bem pertinho dali que eu nasci...
lá ainda tem juremeira, tem cambucá, tem losna, arruda, manjericão, fedegoso, chapéu de couro a distribuir sementes e flores sem distinção...
tem jurubeba, mata pasto, colibri, rolinha fogo pagô e tem papa capim...
tem caga sebo e gavião
tem homem fazendo tijolo, mulheres fazendo do barro panelas, brinquedos e bonecos pra vender na quarta-feira na praça de Biritinga
lá tinha lapinha em mês de dezembro pra o nascimento de Jesus Menino celebrar...
tinha cocada de coco feita por dona Joaninha que assava tudo no seu fogão!!!
tem pés de muleque, beijus quentes sem manteiga na casa de farinha de dona Davina, perto de dona Sinhá...
tem farinha pra fazer e mandioca pra descascar, pra "cevar", pra fazer tapioca e beijus de massa e farinha de goma fresca pra torrar...
tinha seu Antônio de Belinha rezador de mau olhado, "ventusidade", "espinhela caída", de "quebranto" e dor de cabeça a espantar sem remédio de farmácia
foi ali onde eu nasci...
naquela casa de taipa,
com piso de chão batido,
sem sanitário e sem banheiro,
mas com folhas de malva pra se limpar
com água do riacho pra o banho tomar
com muitas galinhas no terreiro...
com potes de barro pra água doce deixar a minar nas suas paredes esfriar...
muito chá de folhas verdes de hortelã miúdo e do graúdo, pau de rato, pra várias dores curar....
dor de barriga, "ventusidade", gripe e
"pustema"
saudades dos lençóis e roupas que minha lavava e estendia nos varais de cerca de arame farpado,
com essas roupas com cheiro de sol a nos cobrir com tais lençóis nas noites que se esfriavam nas madrugadas desse sertão
das cantigas de roda em noites de lua cheia - cantando : - "eu morava na areia, sereia! me mudei pra o sertão - sereia!"
no terreiro limpo lá de casa,
muito alvo que chegava encadeiar
ainda lembro dos aboios do meu pai Arlindo vaqueiro, que fazia descer lágrimas de quem tinha bom coração
e dona Loura minha mãe, a lutar como uma leoa pra educar os filhos na cidade, plantando feijão e mandioca, e eu a vender na cidade, cana, quiabo e manga pra não pegar maus costumes...
até hoje me vejo ali...
então ainda mora dentro de mim
esse menino que fazia os seus carros de lata de óleo salada e pneu feito com resto de sandália havaiana...e dessas memórias vivas que hoje colorem o meu cotidiano,
desse homem que andava de pés no chão tomando banho de chuva, de sereno no anoitecer, à luz de candeeiro com cheiro de gás e fuligem de querosene nas pestanas...
eu nasci ali...bem ali...
onde ainda o céu é azul e as minhas pipas que eu fazia de papel seda comprado com o dinheiro das mangas, cocos e quiabos que eu vendia na cidade...
pipas amarelas a dançar em céu azul...que eu empinava escondido do meu pai
hoje ainda sentindo cheiro de galinha caipira ao molho pardo
nas penelas de barro feitas por dona Celina que ainda mora pertinho dali - onde eu nasci
nunca me esqueço das fraquezas do meu pai... sem dinheiro e trabalhando como um louco...passava o maior sufoco mas nunca faltava comida, nem carinho, nem atenção
foi com ele que aprendi sentando num tamborete
que seu Dilton ( pois antes (quase) sentávamos no chão) lá da cidade nos deu, pois não tínhamos aonde sentar, a não ser no chão ou nos batentes das portas da casa...
mas meu pai e me ensinar as primeiras lições de ética e de estética do bem viver no sertão ou em qualquer parte do mundo, que só depois, lá na faculdade de filosofia é que eu fui ver e comprovar...
o valor das grandes lições de quem nunca teve escola pra estudar
a não ser o mundo com suas estradas
do estado de minas gerais
cortando toda a Bahia
e chegando em Sergipe
pra poder ao seu destino findar e todo o gado entregar
e dali a me ensinar as regras do bem con-viver
que ele nas estradas da vida aprendeu sem nenhum livro
e com o gado a labutar e a aprender a lida da vida
ele foi o meu primeiro filósofo antes de eu estudar
sócrates, plátão, sartre, nietszche na Universidade Federal da Bahia
que eu fui com tanta alegria como pobre teimoso estudar
e me tornar o homem que pretendia ser
fincando os meus pés no chão do sertão
onde fica o meu coração pra poder conhecer o mundo
e Paris, Nova Iorque, Miami, Salamanca, Roma, Filadélfia, Porto, Madri
e outras cidades do mundo
e do Brasil nunca negar - Caruaru, S. Gabriel, João Pessoa, Recife Maceió, Salvador, Rio de Janeiro, S. Paulo sempre poder visitar
e um cidadão do mundo poder me tornar
e poder voltar gostando muito mais do meu país
muito mais do meu lugar onde nasci
ou ondo eu moro e respiro
gozo e transpiro os versos do meu modo de viver e de pensar
e amando mais o meu lugar onde eu nasci
sem outros lugares desprezar...
é...foi bem ali onde eu nasci