Um piolho

O que requer a dor

senão colher de chá,

ou remédio qualquer

para a desmemória

que a mulher da farmácia disse:

— Acabou.

E sair assim de coração torcido,

queixo quebrado, faltando um ouvido

é deveras injusto.

Um espelho, um susto!

Custo a crer na imagem.

Vi-me bicho-homem,

bicho-grilo, bicho-bicho.

Capim crescido com cabelos

e daninhas enroscando as barbas.

Um piolho!

Um piolho peregrino de cabeças

aninhou-se por aqui.

Um piolho inquilino

deu de ser vizinho do que penso.

Um piolho sensitivo!

Sentiu-me o peito murcho

no luxo frouxo do andar.

Previu tempestade nos olhos,

chiadeira, falta de ar.

Eis que me tem valido

a pequena praga milenar.

Pequena obra pontilhista,

mas de nada quero sua descendência

pontilhada.

Jamais daria conta

de tantos adivinhos.

Jamais seria uma favela,

cortiço de lêndeas videntes...

Sim, o piolho...

ele se foi sem deixar rebentos.

Foi curar outros tormentos,

clinicar outras cabeças.

Essa, em solteirismo de ilha,

ficou despovoada, filha ao relento.

O que requer a dor

senão remédio na colher de chá?

Acho que o tal desamor

jeito não tem que não remediar.

Felix Ventura
Enviado por Felix Ventura em 22/01/2007
Reeditado em 24/01/2021
Código do texto: T354865
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