Canalha



Ele disse: estou aqui.
Como quem mastiga a mentira,
antes de cuspir o alívio.
E saiu pela claraboia,
como nos versos de uma música brega.
Ele disse para chamar seu nome,
quando o mar ficasse incontrolável.
Eu preferi fazer tudo sozinho,
como sempre faço quando estou me afogando.
Ou quando estou simplesmente, observando.
Sons de passo na madeira,
e não é o sapateado das coristas.
deve ser algo muito interessante
que acontece lá em cima,
mas que não vou ver porque
nada mais nesse barco surpreende.

Eu sigo lindamente então,
arquivando mais uma promessa antiga.
Está numa pasta amarela, mofada,
entre a pasta: coisas a esquecer
e a pasta: disfarces canalhas que já usei.
E essa velharia toda me dá nos nervos.
Mas só restam elas de originais.
O resto é cópia inofensiva,
impressa em papel inodoro.


Ele disse: estou aqui.
Mas era só uma projeção noturna.
Coisas que surgem quando o limite chega
e nem todos os poemas escritos
podem fazer acreditar no que não está mais.
E o que temos daqui pra frente?
Temos um leme a ser guiado,
meu astrolábio caduco e o sextante obsoleto.
Navegação nunca foi meu forte.
O mar me enjoa.
E me enjoa mais quando ouço o barulho
do corpo atirado ao mar,
minutos antes de eu responder:
"mas você nunca deveria ter estado aqui".
Coisas fora de lugar.
Menos a cópia barata da Vitória de Samotrácia,
espetada na quilha, que corta esse mar tedioso.
Ninguém pode me culpar por não tentar.
Até tento convencer.
Mas depois do exercício efêmero,
o que sobra é minha esnobe volubilidade.
E as paixõs brotam a cada porto.
Navego num mar de corpos acinzentados,
e de sentimentos de fotonovela antiquada.



EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 07/03/2012
Reeditado em 07/03/2012
Código do texto: T3540412
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