Primeiro amor

Na tua ausência

andei indevassáveis caminhos para o perfume da minha infância

para a velha casa onde os passos me levaram

muro baixo

escadaria

eis-me aqui, diante da porta que nunca se fechou

no meu peito

no meu jeito

na minha memória oscilante

o balanço dentro da sala

as pobres paredes desmaiadas num azul tímido

o chão de taco pra eu deslizar a minha solidão

o tempo passando como contas de um rosário

Era preciso que nos encontrássemos

teia do amor

infantil semente

versos pueris brincando com teu nome

que se fez em mim

tão leve

Pingo

as tuas mãos pequeninas

o lençol deitado sobre nossos corpos de adeuses

de dia o beijo doce trançado à minha boca

a crisálida dos teus seios

para o nosso amor calado

abraça-me

que a noite ei vem

e eu não quero esquecer o contorno dos teus braços

o gosto do gozo nos nossos lábios

tua boca indefinidamente em mim

nossos corpos tenros e quentes

me abraça, amor,

me abraça

que o mais pequenino momento junto de ti

será subtraído da noite da tua ausência

Os dias passavam assim

sem saberem que tudo aquilo era poesia

sem saberem que a unção dos nossos corpos

a alvura da pele recendia a afetos

onde dormiam nossos sonhos perenes

sem saberem da claridade dos dias

ou das noites escuras e sós

desconhecendo que seria este resíduo de sol eterno

templo aonde ainda mora minha mão aberta para os teus seios

aonde moram os meus olhos que ainda cantam para os teus

aquela canção do Renato e seus Blue Caps:

“Ah! Deixa essa boneca, faça-me o favor

Deixe isso tudo e vem brincar de amor

De amor, hei hei hei de amor”

Ah! Claras manhãs de candura

onde tudo se perdia e se encontrava e se perdia

na face doce do anjo que tu eras

nos teus abraços

havia de morrer

abraçadinho

dias nublados, simplesmente

ingênuo sol ausente

vivíamos em nós

o amor se estendendo pela casa

o beijo lento

horas vazias para me acalentares

para punir-me

com teu amor

eternidade

tardes chuvosas

música no telhado

bastava-me o sol negro dos teus olhos

tua cabeça no meu peito

teus cabelos suados e cansados

centelhas de uma lágrima

morríamos em nós

para sempre

adeus

Deixei-te ficar comigo

pelos tempos inocentes

e agora que o tempo repousa

sobre mim teus olhos negros

e passeia doces imagens

pela memória palpável do teu corpo

sinto que um menino tece a tua ausência

na sede colorida do passado

na madrugada

em tempos maiores

antes de ti

acaso nossos destinos

não fomos nós que os plasmamos?

e o meu gesto antes do teu já te procurava

dizendo-me coisas tão intensas

que eu ouvia como um fogo a crepitar

na noite fria

E por todos os tempos

exauridos

recordo

o eterno regato

de águas ensimesmadas

como se fossem a vida

e seu tanto de carinho

que do teu amor ainda me enternece

me enternece o que fomos

o que depois de ti fui

o que depois de ti serei

Pingo

nada sei do Tempo

eu nada sei

ao passar

passou calado

silente

nada disse da nossa dor

nem do bem querer da gente

Meu coração vem da terra

com a brisa que vem com a tarde

com a ternura do campo de flores

penso em ti

é saudade

é só poemas de amores

silenciosos como o tempo que os cria

às vezes ardem as palavras que encantam

invento um mundo tão pouco

invento o cair da lua

posso brincar de ser louco

e depois sair para a rua

mas a beleza do teu amor

no meu amor continua

como um domingo

Onde estarás dentro destes anos todos de menina, onde pousarão

teus olhos negros enquanto o tempo prostra em nós o seu cansaço?

“O tempo é na verdade o do retorno.

Pensa como se agora fôssemos argila

E estivéssemos sós e mudos, lado a lado.

Por um momento (se viessem chuvas)

Talvez se misturasse o meu corpo com o teu

E um gosto de terra úmida aproximasse

Brandamente

As nossas bocas"

(Hilda Hilst)