Com puta dor

na memória dos poemas

na ponta dos dedos

nos olhos fechados do sonho

nos espelhos escorrendo tinta

da dissolução das imagens

pernoitam ávidas aves de pedra

de inquietos cantos

pernoita o homem obscuro

com seus atos de miragem

com sua insaciável voragem

com sua voz turva

sua fome de chacal

sua poesia pecadora

dos versos clamando pela madrugada

nos olhos do mar tremeluzindo

soluçando enormemente

a dor esquecida nos traços tristes do retrato pungente

enfeiando um mundo que ainda não morreu

mais além

o jardim de brisa

rente às flores

inunda o céu de papel-arroz

com estrelas

com silêncios

com adivinhas para os poetas

escondidas nas nuvens de algodão

na luminosidade esplêndida

do dia

no fim estalado da escuridão

da noite

aberta como um verso

pingando, oscilante,

escorrendo pela mão

vertendo do fim dos meus dedos

meus medos

minha ilusão

meu rio

minha saudade de mim

e de ti

minhas bugigangas de infância

meio pirulito vermelho

sem o palito

a bola surrada e puída

o pião batatinha

com metro e meio de fieira

sete bolinhas de gude

uma pipa voadora

a estrada aberta até o fim da ladeira

uma gaitinha de boca

que eu não sabia tocar

mas que pra mim tinha o som e o gosto

de bocados mordidos de liberdade

de vento entrando pela janela

balançando meus sonhos

a minha alma acesa ao fogo

do exílio da solidão

os pés vermelhos de terra vermelha

que por ali era muita

as costas da mão pra limpar o nariz

meus olhos em roda do teu vestido

minhas mãos colhendo da vida

meu primeiro amor

que enchia meus dias de segredos

as noites de medo de ficar sem ela

isto é tudo que tenho

dentro deste quarto escuro

nesta voz dentro de mim

pra arrastar as noites

e os passarinhos

para esta brincadeira

de ser poeta

sentado nesta cadeira

pensando um zilhão de besteiras

sem sono pra acordar

uma saudade

de um tempo que eu não vivi

das pétalas sedosas que eu não toquei

do perfume que eu não senti

da tarde irisante depois da chuva

saudade bebida aos golinhos

oh, menina

me afastando de ti

quarenta anos depois

a quem possa interessar

ainda te amo

eu te amei a vida toda

só não tive como te contar

e nem um verso te dei

eu não sabia falar

eu não sabia escrever

eu não sabia estas coisas que aprendi

no tempo escorrendo mel destes quarenta anos

ô, meus olhos negros

como em nenhuma noite há

agora são as lembranças ao redor de mim

delineando os meus sonhos

num simulacro de vida

me apanho te amando

antes e depois destes quarenta anos

é madrugada

acordei no meio da madrugada

pra beber água

o pensamento uma tentação

sento ao computador

descalço os chinelos

a cidade é um corpo delicado e suave

me olhando pela janela

amo a barra do dia inscrita nesta quietude

um automóvel passa riscando o ar com seu som

ainda de sono

fragmentos de um sorriso

como é possível amar o dia

com a presença deste laço azul da noite?

com estre esforço piedoso do Senhor

para suprir esta carência compassiva que me sorve aos borbotões

a vida engravida da gente

e faz defensável todo e qualquer argumento

a espera

dos teus olhos negros

o céu azul de cobalto

os remos imitando a busca por um caminho

a vida cresce nas minhas perguntas

as coisas são o que são

e a vida...?

a vida é esta coisa coruscante

a vida é este eterno cantochão