Regresso

anda, vem brincar comigo

neste velocípede

que ficou guardado

nas marcas fundas da terra vermelha

ficou amiudado nos meus olhos de cinco anos

nas tardes do passado inabalável

quando a pobreza sentava-se conosco à nossa mesa

e éramos felizes por que tinhamos que inventar uma vida a cada instante

para que o momento seguinte se cumprisse sem mácula

uma vida reinventada no vácuo dos ecos dos nossos pés descalços

sem pressa

deixando pegadas lentas

na poeira

vermelha

macerada

da nossa rua

nas nossas vidas

peremptoriamente

como sangue na veia

vem pular corda

brincar de roda

rodar pião

pular o tempo

rodar a vida

soltar balão

esquecer o choro nos olhos de um tempo antigo

nos céus redondos das amarelinhas

vem brincar de passa anel

por entre as mãos entreabertas de algum anjo barroco

na rua que era da gente

e que agora é só uma rua deserta

suspensa em sua essência de artífice de sonhos

vem brincar de fazer sombra na parede

onde escorre a luz da vela

bruxuleante

entalhando com as mãos

cachorros

micos

dragões

sombras bordando

os olhos admirados

num tempo de vagarezas

vem brincar com nossos medos

enredados aos passos da hora

lenta e inconclusa

vem cantar comigo a cantiga da espera

do descomeço de tudo

do desconsolo de tudo

vida

dor

felicidade

teus olhos negros

reis de um reino só visto das tuas janelas

negros sininhos que me olham

e plantam saudades

ai quem me dera rodar

na vertigem dos teus olhos

e encontrar novamente

a minha boca na tua

os meus dedos fazendo cócegas

roçando tua pele nua

na maciez do lençol

que nos servia de céu e de lua

vem brincar de ser saudade

assim como quem acredita que o tempo passa

um instante de cada vez

sem este perfume doce

e sem as bilhas da maldade

vem jogar as cinco pedrinhas

que as nossas mãos ainda guardam os ruídos

do baque que as pedras dão

quando alcançam o chão

quando cada pedrinha jogada

é um fragmento da mão

vamos brincar de beijo

na cabaninha dentro de casa

onde só cabe os nossos sonhos

nossos corpos pequeninos

as flores cujo sons não entendo

a tarde marchetada dos nossos onze anos

e o leve ruído das asas

dos anjos

serenos

profundos

densos

alegres

solitários

menestréis

recitando a luz de maio

anjos

fuga

diáspora

sementes deste lugar

onde o amor é inocente

dá-me tuas mãos, vida minha

para que eu não pereça na memória dos teus dias

deixa tuas mãos nas minhas

pra eu as guardar na lembrança

pra eu não ir morrendo de paixão

e de ausência

nos caminhos desnudos

do enredado tempo infindo

que céu nemhum me despirá

desta noite em teus olhos

negros poemas sem métrica

ágatas negras

negros veludos

suaves

feitos de amor

de linhos negros tecidos

casulo de negra borboleta

negro liame, negra flor

sonhos e mistérios caídos ao chão

anda, vem

vem inventar nova estória

usando o reverso das palavras

o lúdico ser dos nossos onze anos

num jardim de estórias fugazes

trêmulas

risonhas

que a tua boca pequena desenha

com este ar de arcanjo de um grande deus

com este sorriso maroto

vem brincar de ser minha garota

que eu brinco de ser seu garoto

vamos apanhar sementes de vento

para plantar a madrugada

e colher estrelas afoitas

que caem de dentro da pressa negra da noite

no momento em que a noite se entrega

a lirismos de escuridão

silêncio!!!

vamos brincar de vaca amarela?

não pode rir nem falar

se não...

come tudo, tudo, tudo

e neste silêncio profundo

calados a vida e o mundo

olho você...

tão linda nesta cara séria

de retrato três por quatro

charmosa

até o último fio de cabelo

o riso aflito na garganta

as palavras desperdiçadas por dentro

os olhos

os corpos

se provocam

vaca amarela...

vaca amarela...

jorram pensamentos falando às gargalhadas

converso comigo mesmo para não rir ou falar

olho teus olhos...

caminhos negros aonde vou te encontrar

e te amar

enquanto o dia clama pela claridade dos teus beijos

vem brincar de aprendiz

do riso solto e gaiato

vem brincar de ser feliz

pular fogueira no sol

brinca comigo de sonhos fora do tempo

me abraça

antes de eu desesperar

vamos brincar de amarelo

num arco-iris de sedas pairando no ar

vamos brincar de silêncios borrifados

de cantos de rouxinóis

anda, amor, vem brincar comigo

que o tempo recortou a vida

mastigou nossos brinquedos

fez poeira para cobrir os nossos passos

manipulou os débeis tracejados das horas

dos dias

dos anos

mas não mastigou o anelante rumor

do antes de tudo

antes da réstia do sonho

do desassossego das folhas

desprendendo-se dos relógios trêmulos

pela ausência friável

e inconsentida de nós dois

e por esta saudade oblíqua

do amor cândido e delicado

da rua cinco de outubro