Todo dia
todo dia
ao meio-dia
a flor se abria
com olhos de lágrimas
ardente em suas beleza de ébano
as pálpebras leves e doces de amor
a fantasia nas mãos felpudas
de pólens e segredos
perfume verde de chuva nas pétalas
puxando a tarde amarrada por um cordão
a multidão acorria
para ver se era truque
palpitação
alquimia
glória dos céus
bem aventurança
ou se era coisa do vento
que correndo sobre os silêncios
e as águas
e sob o sol nascido em meio à pobreza
fazia a flor acordar
mitigação para a dor
dos dias e dos homens
todo dia
ao meio-dia
a flor se abria
franzida como uma prece
latente na tarde que não se via
mas que já se escutava
no esvoejar das horas soltas ao vento
nos trapos que lhe serviam de cordão
puxando a tarde raspada à solidão de cinco sóis
todo dia
ao meio-dia
a flor se abria
pinçando os olhos da natureza
nos últimos zilhões de anos
soberana
abriu-se, primeiro, aos olhos dos homens
depois abriu-se aos seus corações
e o homem, atônito,
desamparado
a inércia movendo-o para longe de si
percebeu distintamente que a flor sorria
enquanto a flor se abria
e que seu riso cabia na vida inteira
desde os meninos pelados
maltrapilhos
até os homens de terno transidos de noites
e as mulheres com seus vestidos de neblina
floridos de amanhãs e de estrelas
todo dia
ao meio-dia
a flor se abria
e eu não sabia
se sonhava
ou se tudo aquilo
não passava
de uma nódoa de poesia