Enquanto o sono não vem
Ao murmúrio da chuva que cai sobre os cais ancorados ao passado e escorre pelas dobras do dia cinzento, a vida desprende-se inteira dos cordéis e dos jogos de poder, competição e de imenso cansaço.
No ar úmido apagam-se beijos.
O sentimento, sozinho e sem um rio que o embale por leitos caudalosos, caminha sem dimensão por entre as brumas incandescentes de um mar lavrado a segredos.
Ao longe as ondas rebentam-se nos rochedos entorpecidos pela solidão dos ventos crepusculares que querem lhes tomar o dia
A tarde é um engano movendo-se diluída pela aragem do mar,
furando a ruína do dia,
carregada de noites.
Iluminura de uma réstia de luz esboroada deslizando por entre perfumados bosques, recendendo ao perfume intenso das glicínias.
Um vagaroso olhar procura dentro do silêncio os indecifráveis motivos do amor, as sofrêgas e insondáveis razões febrís do medo.
Ressoa um sol em iridescentes espelhos de água.
Acorda a manhã em um dia de resina cintilante,
o sono esvoaçando,
diáfano,
envolto em estratos submersos de diferentes medos.
Um medo dentro do outro,
dentro do outro,
um medo dentro de outro medo...
Medos talhados na inquietante pedra da memória e das solidões que rondam os jardins da minha loucura.
Gestos agitados a desmentir o que as palavras disseram.
Melancólicas ilhas de ternura afundam,
debruçadas,
fitando a lua,
sem ninguém.
Espiando o mar e os barcos bordados na espuma das ondas.
Vozes tolhidas nas fúrias das pequenas provocações.
Miragens caminhando incertas para fora da noite e do sonho.
O cansaço dito nas palavras que não podiam mais calar.
A fantasia enchendo-se de despojos insones escondidos nas frestas das minhas frustrações.
As flores envenenadas pela ferrugem do desinteresse.
O renegar debruçado sobre a monotonia.
O grito aproximando-se por ruas desertas: esquecimento, procura em vão, agonia.
Estupor das gotas de orgulho irremediavelmente zumbindo e expandindo-se ao longo das fissuras do quarto.
Os pulsos trêmulos da tristeza abertos sobre as flores secas da indiferença.
O fogo que extingui-se dentro da areia dos nossos corpos.
A cidade translúcida,
amanhecendo nua e despovoada,
trazendo o fim que tornou-se nítido nas palavras
agitadas pelos ventos sujos da raiva e do rancor.
Vento nácar atravessando nossas vidas como um jogo cruel.
Por sobre a cidade tilintavam pequenos pingos de chuva que desmanchavam as palavras ao contato com o ar.
Era novembro e os olhos semicerrados da primavera rumorejavam misteriosa linguagem com a qual a penumbra incrustou-se ao fim de qualquer possibilidade para nós.
A amizade decepada penetrava os farrapos do dia.
Nada se movia.
Nada.
Apenas as tuas palavras flutuavam vertiginosas no espaço do quarto.
Meu coração repousava junto ao rodapé encerado.
Alucinação nacarada.
Inexistentes sentimentos.
Não é possível tocá-los.
Não é possível sequer reconhecê-los nas imagens desfiguradas da tua voz refletida no azinhavre do espelho denso.
Minhas mãos, caladas pelas incertezas, pendiam ao longo do corpo.
Nada se movia.
Nem o amor,
nem a amizade.
Nem um gesto era necessário,
máscaras desdobravam-se bruscamente.
O afeto só existia nas palavras esmagadas dentro do teu silêncio e na poesia petrificada na brancura indigitada do papel.
As palavras irromperam como um veneno destilado na saliva seca do descaso.
E o eco, reverberando a mudez dos gestos e o solilóquio dos olhares, espalhou pelo quarto o simulacro da tua própria voz.
E pelo tom da tua voz renomeei o mundo e o meu coração.
Entro pela janela do espelho e a litania do fim dormita em minha alma triste.
O dia, soprado pelas velas abertas da alba, fustigava as folhas secas do fingimento
Não tinha mais antigamente, só rumores dolorosos a nos esperar ali adiante.
Nada mais nos ligava a não ser as sombras espessas da indiferença.
Nem amor,
nem amizade...
Do inflexível silêncio fez-se o inaudito adeus.
Fez-se a hora tardia e morta de partir.
As horas se desataram do tempo.
Os relógios anotavam o frêmito das horas nas areias quebradas pela insuspeição dos ventos a gemer.
As ruas vacilavam, cansadas, no caminho entre o hotel e o aeroporto.
A vida agarrava-se tenazmente aos residúos de um mundo inacabado.
Lá fora a tarde contemplava o vento descalço deambunlando rumo ao escuro da noite iluminada pela insônia dos versos coriscantes algures.
A paisagem vista da janela antiga dos dias sem ninguém.
Silêncios agudos irrompiam como um presságio inaudíveil à memória.
Frívolas tempestades ceifando os nomes pelos quais te chamava.
Do outro lado a tarde se afastava entristecida.
O burburinho da cidade se fechava ao redor dos imutáveis monólogos amarelos.
O mar, tão próximo, desaparecia nos murmúrios do fulvo calor de novembro.
O olhar sufocado sussurrava fogueiras,
queimando o amor.
Passos se afastavam.
A face turva do silêncio impressa no papel contemplava o olhar irreconhecível do amor a definhar.
As chuvas ofegantes molhavam com sal os lábios que não disseram adeus.
O vento, cansado, regressava às pétalas da negra flor de papel.
O tempo atravessava suspiros desgastados.
A primavera, de repente, travestiu-se de solidão.
Nos jardins as flores desertas queimavam vagarosamente, imiscuindo-se com a chuva e com as sombras desarrumadas do não.
Nuvens maduras evocavam enevoadas lembranças sem passado
irremediavelmente estremeciam o sonho, o céu
e o chão.
Agora, enquanto o sono não vem,
fecho gavetas de sonhos,
me debruço sobre a lua...
seu perfume de violetas.
Na madrugada suja pelo dia
devasso ninhos esquecidos pelos barcos que carregam as luzes da aurora.
O sonho do amor já não importa.
Queimou-se com a tarde junto ao mar.
Agora, enquanto o sono não vem,
ouço palavras no ar,
colho poesia.