[E, no entanto, Amanhece...]
É de manhã, os ventos ainda dormem,
e a poeira fria da avenida ainda está aquietada
pela umidade do orvalho da noite.
Os urubus ainda estão entorpecidos
nos altos das árvores da mata,
os seus olhos argutos já brilham,
mas em suas narinas ainda não se acendeu
a fome das carniças do mundo;
aos conformes de sua natureza,
eles esperam o dia cumprir os seus ritos.
[Em sua rangente bicicleta Philips,
desce a avenida o funcionário do matadouro].
O leite vem quente na mesa,
fumega o bule de café
na chapa do fogão de lenha,
e o aroma do pão da pobreza rala
enche o ar de promessas de vida melhor;
No quintal, fanadas roseiras ainda medram...
Na cozinha, as panelas, os alumínios,
recém saídos da noite sem olhos,
rebrilham a mesmice dos trabalhos e os dias
dessa vida inútil e dada a repetências
das tramas vis das gerações passadas.
E, no entanto, para a desgraça de muitos,
para a adunca rapinagem de alguns,
e para as falsas esperanças de outros,
amanhece... Sempre amanhece!
[Uma explosão nuclear não tem efeito maior
do que o de um sempiterno e repetente amanhecer
que nos condena à viciosa recorrência de ser]
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[Penas do Desterro, 14 de janeiro de 2007]