Definitivamente só
Olho pela janela o céu cor de chumbo,
sonâmbulo,
baixo,
quase acessível às minhas mãos.
Desenhando, lentamente, contornos de rendas cinzas inacabadas.
Por entre os arbustos de nuvens cinzentas,
o passado, incessante, espargi-se iridescente,
indiferente à sonolência do dia,
impregnando gesto e alma, com ecos vertiginosos em mim.
Cartas em papel lindamente manuscritas.
Mensagens entregues com décadas de atraso.
O passado, irresoluto, cobrindo-nos com a tênue pele dos lençóis.
O vento traçando em arabescos o que ainda há de ti no meu olhar.
Teus retratos permanentemente no lume da minha memória.
Teu nome escrito nas bordas das folhas dos meus cadernos.
Flores num vaso.
Você nua...
Tão linda!
O céu está pesado e o vento úmido inunda
com cheiro de chuva os espaços estilhaçados do tempo.
O passado evola-se no ar como um perfume
que encanta ou desagrada aos sentidos.
Entra pela casa, assim, como quem vai em visita a um amigo...
e já me faz companhia.
Traz estas paisagens de quartzo,
traz no fogo silente dos sonhos vividos dois olhos tão lindos...
dois olhos tão lindos de alguém...
de um tempo sem máscaras,
esboço de um céu eivado de estrelas.
Traz o perfume das flores nas tuas mãos dissimulado,
onde me abandonei e senti nosso silêncio na solidão dos teus dedos
quando te entreguei meu coração delirante incendiado pela bruma em cio.
Onde guardei as histórias decoradas pelos dias
em que era sempre o momento de te amar.
Meus lábios ainda sentem o beijo no seio moreno da menina morena.
Seios da mulher que viria fascinante no tempo cravejado de encantos..
Por enquanto é só Pingo.
Por enquanto é só a sofreguidão de quem descobre o próprio corpo.
É só a tepidez dos dias floridos pelos teus cabelos que brotavam dos lençóis.
É o começo do beijo...
Teus pequeninos olhos negros adormeciam em flutuante cegueira
dos sentidos que iam-se embora...
dos nossos lábio unidos embaixo do lençol...
dos nossos corpos colados...
beijo sem fim.
Crisálidas rompendo o casulo de um mundo que ardia
para além da tua cintura,
para além das minhas mãos na aldeia do teu corpo.
Minha respiração falando ao teu ouvido
num fim de tarde coberto de gotas de chocolate.
Frêmito roçar dos teus seios no meu corpo.
Apanho o passado no sabor adocicado da tua língua,
ainda com gosto de chiclete,
nos teus olhos de pássaros negros engaiolados nos meus.
Cativos do sussurro das nossas vozes
e dos nossos dias.
Os dias sem fim...
O tempo imobilizado
A casa vazia.
A casa guarda a insônia esquecida dos caminhos sequiosos
onde tudo era abandono e carícia...
O dia continua cinza e pesado.
A chuva apanha ao acaso gotas pra derramar em algum jardim
de violetas de papel cintilante.
Lá fora a tarde caminha com passos de areia levando memórias
e os ninhos da minha infância.
A tarde dorme sob a chuva e sob a nossa história.
O dia, lanterna chinesa, esvoaça rumo a noite indecifrável.
A sombra caminha entre as vidas,
entre as árvores na janela
Folhas secas...
Luz opaca...
Apaga-se a luz
O dia chega ao seu fim...
Definitivamente só.