[Recorda-se de Nós?]
...E isto se não fôramos nós assim,
tripulantes de barcos à deriva das eras,
seres errantes, argonautas absurdamente pálidos,
mal escapados dos troncos em que nascemos.
Somos presos à materna urbe que não envelhece
senão no espírito comburente da vontade
que se exaure em desânimos de eternidade...
Somos vítimas oculares daquela torneira solitária
cujo fio d’água entortava-se ao vento da tarde
num arco intrigante, até arrebentar-se no chão nu.
Em nossas bocas, o sabor do café com quitandas
que ora sentimos, lembra-nos, com amargura,
as já mal fornidas carnes cheirando a baú de relíquias!
Boiamos, insepultos, no mar de nosso próprio orgulho,
nossos sexos ficarão para sempre incompreendidos,
vítimas estranguladas no patíbulo das cruéis desconfianças.
E se eu já não disse tudo neste poema que envolve
o meu corpo como uma trepadeira de flores roxas,
fica o resto para depois, ó deusa, ó deusa doida!
[Penas do Desterro, 12 de outubro de 2006]