Uma rua que era Maria

As lembranças que tenho dos dias da minha infância borboteiam com a recordação dos meus passos descalços na terra oculta pelo desconhecido,

pela poeira que o vento soprava em redemoinhos,

rastros tardios e trêmulos,

prisioneiros da luz ambígua que os dias traziam.

Passos que ainda caminham na velha rua onde passei a infãncia,

onde vivi meus primeiros medos,

segredos absolutos que o tempo cuidou de esquecer ou de esconder, onde, sem saber, amealhei poemas no riso bobo e à toa de criança

e onde sonhei infinitos amores dentro de noites púrpuras,

longe do mar,

sob o murmúrio do vento nas folhas das árvores

e da noite pintalgada pelo cricrilar dos grilos.

A velha rua ia da porta de casa aos infinitos do mundo que, naqueles tempos, era algo em torno de umas cinco quadras ao redor de casa,

mas que continha, neste espaço, toda a gênese humana contada na ilusão de heróis e de folguedos.

Rua terna.

Perene,

a estender-me os braços em suspiros longos dos ventos do passado.

Profundamente triste em seus momentos dolorosos.

Amor e encanto nos dias em que sua alma refletia o grito da luz do meio dia.

A velha rua traz, em toda a sua memória, os sonhos que fui e as fantasias infantís que me fizeram a pessoa que sou.

Na terra onde os meus pés emergiam da poeira nos tempos secos,

onde corriam espadanando águas nas estrondosas tardes de chuva e folia e lama palpitavam os dias arfantes de um tempo que tangia a vida na rua que era Maria.

Velha rua que era Maria... de Lurdes, exatamente.

A velha rua, as tardes coautoras inexprimíveis de belezas inefáveis,

as chuvas e os sóis de outrora falam com tanta doçura dos retratos daquelas casas e seus quintais enredados na minha história.

Ecos a falar da liberdade pressentida no orvalho das manhãs,

na neblina dos invernos bocejando o amanhecer,

no cheiro intenso da terra depois das chuvas,

do sol caminhando pelos arbustos dos terrenos baldios,

tremeluzindo as folhas dos pés de mamona onde nos talos da planta os mandrovás se plasmavam do nada,

do vento balançando a folhagem do imponente abacateiro lá no fundo do quintal,

das galinhas ciscando no terreiro,

o cachorro dormindo pachorrentamente nas sombras que se escondiam pelos cantos,

embaixo das árvores,

perto do poço,

embaixo da escada,

debaixo do tanque,

na varanda,

onde o sol discorria causos lentos nas manhãs escanchadas no tempo.

(...)

Nos dias de sol limpinho a solidão dos meus olhos se deleitava

ao ver sobre os arbustos as roupas branquinhas estendidas para quarar.

Pequeninas nuvens caídas de um céu distraido,

um céu que se esqueceu de voar.

Vez por outra a mãe mandava ir pegar água lá do poço da casa de dona Luzia.

A ordem despertava um misto de enfezamento com alegria.

Enfezamento porque tinha que trasnportar a água em baldes desde a casa de Dona Luzia

até a nossa, subindo, com os baldes pesados, escadas e tudo o mais.

Alegria porque o puxar água no poço era um momento único de desafio e superação.

O desafio era soltar o balde pro fundo do poço deixando a corda correr sustentada somente

pelas mãos postas em cima do rolo sem deixar o sarilho descarrilhar.

Este era o desafio deixar o balde descer assim sem perder o controle da corda.

De vez em quando perdia-se o controle da corda e a base de apoio do sarilho

era arrancada da estrutura de alvenaria que o sustentava.

Quando isto acontecia Dona Luzia virava uma fera e ia reclamar com minha a minha mãe.

Era surra na certa.

Se bem que naqueles tempos apanhava-se por tudo e por nada,

o simples fato de existir e de respirar podia ser um ato de afronta aos adultos

e motivo pra umas boas bordoadas.

O poço encantava também pelo eco que produzia.

Inclinava-me nele e gritava para que o poço respondesse com sua voz abismal... ecos de um antigamente...

Ecos de uma inocência que persiste na névoa desta voz insolente que, sufocando, ainda agora fala em mim.

Um dia Tita, a galinha, caiu dentro do poço.

Foi um alvoroço para tentar salvá-la.

Juntou gente.

Todo mundo palpitando.

A criançada só espiava...

atenta...

assustada...

angustiada...

torcendo para que tirassem Tita com vida do poço.

Não deu.

Tita afogou-se.

A lembrança de Tita caída no poço me acompanhou por várias noites,

o sono mascando o acontecimento,

o ar amordaçado pelo negro poço,

o sentimento a chorar o triste fim de Tita.

O tempo, calado, foi consumindo os dias...

Vazando as noites...

O tempo colocou de volta o sono bom e imanente nos meus olhos de gente pequena.

Todo dia tinha futebol na velha rua de terra,

rua criada pra ver moleque crescer,

jogando bola,

rodando pião,

batendo lata,

soltando pipa,

o vento vindo no assovio,

os pés descalços na terra compacta e dura do tempo de estio,

cremosa e macia nos dias de chuva.

E as noites de céus estrelados onde esfolhavávamos o céu estrela a estrela ...

Noites de busca aos discos voadores...

Esta história de disco voador quem inventava era o meu irmão que cria nos OVNI.

De onde vinha tanta certeza na vida extra-terrestre?

Não sei.

Talvez seja a mesma certeza que vem criando deuses e mitos ao longo da história humana.

Então ficávamos todos, meninos e meninas, de olhos vidrados no céu procurando nossos amigos alienígenas.

Enquanto se procurava os discos voadores no céu os corpos, aqui na terra, se aproximavam,

um peito a roçar as costas de Angela,

um braço deslizando com brandura no braço de Estela...

Sentindo o corpo das meninas...

E o coração quase saindo pela boca...

A respiração paralisada...

Nos olhos uma cegueira súbita...

Só os corpos viam a órbita insana dos mundos...

rútilas chamas...

desejo e medo.

Uma melodia trêmula transpirava do prazer pressentido

Noites na rua Maria de Lurdes...

Rua da Infância,

rua Maria...

Marias...

que Maria são muitas.

Nas encostas da velha rua erguíamos presépios,

com menino Jesus e outras imagens de santos que tinhamos em casa.

Vendiamos a fé aos passantes.

Esquecendo o Todo Poderoso e o fim dos tempos e o juízo final

e todos os infindáveis castigos que este ato podia gerar em nossas pequenas e incorrigíveis vidas pecadoras.

O que contava era fazer uns trocados pra comprar doces e balas.

E o povo dava.

A maioria não dava,

mas alguns davam.

Quando conseguiamos, eu e meus irmãos, o que achavámos ser suficiente

pras balas e para os doces tiravámos as imagens dos santos do presépio

levávamos pra casa e corriamos pra mercearia comprar as guloseimas.

Naquele tempo a possibilidade da morte e do Juízo Final

era algo que a febre da infância encobria.

Não tinha catecismo que fosse forte o suficiente para nos adestrar e nos conter diante da gula dos doces.

A vida não tinha fim para nós os pequenos.

A morte era coisa de gente grande.

Para nós, as crianças, a vida era uma eterna arenga, um desenrolar sem fim.

Seres eternos são as crianças e o tempo que as ouviu sorrir ou chorar.

Eternos são seus dias de estrepolia.

Hoje, a arenga continua... outra, mas arenga

e o fim é a única certeza que o desenrolar da vida me deu.

Angustiante eram as noites do repetitivo se afogar no ar eivado de inquietudes e tormentos,

da negra enorme com uma mamadeira na barriga.

Todas as formas se reunindo em pesadelos pontilhando as noites com castigos,

prenúncios de abismos a engolfar a vida invisível...

Campos semeados de apreensão

e o medo de dormir novamente...

pendendo o sono e os olhos que a noite, maior que o medo, os faziam pesar... e fechar

O sono vinha assim... trêmulo... assustado.

E a madrugada na velha rua voltava, então, a resfolegar suas multidões de espantos...

até o dia se despojar da noite e abrir as pálpebras para mais um eternidade...

dos dias da minha infância.

O horizonte borrado de vermelho e laranja por um sol fulgindo no passado fixaram em mim estas saudades que irrompem de antigos baús onde fundem-se no ar cativo os dias da minha infância e uma rua que era Maria...