um pequeno fragmento de um capítulo de um livro inacabado que estava a escrever
I
As garrafas jogadas no quarto, ainda com
um bocado de scotch decoram o vão, jun-
tamente com algumas bitucas de locky str-
ike, roupas sujas e um pouco de comida em
cima da cama, ao lado de um sabonete.
Na cadeira está Jean-Baptist, meio ébrio,
meio de ressaca. Os seus olhos então vol-
tados apenas para uma direção, para seus
sapatos velhos.
Quando queríamos falar com Jean, bastávamos
que fôssemos ao seu reduto, ao seu poleiro.
Ele não saía de já por nada, senão Às vezes
para comprar um pouco de macarrão instantâneo,
biscoitos e mais scotch e cigarros.
Mas nem sempre foi assim. Quem eu conheci Jean
quando era jovem, lembra-se muito bem de que
não existia homem mais preocupado com a saúde
aos arredores que ele. Eu mesmo me lembro de
que não havia nada mais desagradável que sair
com ele para jantar, pois ele observava tudo,
todos os copos, talheres e pratos a servidos,
à procura de um mínimo de irregularidade possível,
a menor falhar na higienização era motivo para
chamar os responsáveis dos estabelecimentos
e ameaçar denunciá-los à Vigilância Sanitária,
caso aquele problema não fosse resolvido
imediatamente- isto acontecia comumentimente!
Mas, de uns anos para cá, Jean tem mudado,
mudado bastante. Eu mesmo, que sou seu único
e melhor amigo, o qual sempre o visita quando
pode, para lhe dar assistência necessária e
amizade, não o reconheço mais. Ele era um
homem enérgico, de esquerda, que não conse-
guia assistir ao filme Hotel Ruanda sem chorar
com aquela miséria, não deixava nunca de se
inflamar quando assistia ao filme Germinal- ele
sempre dizia que o poder nunca está com o po-
vo, embora pertença ao povo, porque se estivesse
nada seria como foi e como é. Jean era ingênuo,
um sonhador-mor.
Mas aconteceu algo que transformou seu modo de
ser, sua maneira de pensar e agir. Não sei bem ao
certo, mas penso que tenha sido depois que Lyla
entrou em sua vida. Sim, me lembro bem de como
ele era antes de chegada dela e o vejo hoje, depois
de ela ter ido embora. Mas atribuir sua mudança
à Lyla me parece imprudência de minha parte,
porque pode ser que seja simples acaso e que a
metamorfose se passou quando Lyla chegou e não
por conta dela, pois muitas vezes o que percebemos
e o que se parece ser nada mais é que aparência e impressão.
Pergunto-me se vale a pena falar sobre a vida de Jean.
Pergunto-me sobre a importância que isso me teria e
qual seu valor para outras pessoas. De certo que não
há valor algum! Mas então por que contaria, por que
me poria a escrever um livro sobre um homem que mu-
dou, se tanto já fizeram e com maestria? Acho que de-
vo escrever sobre outra coisa, algo que seja mais poli-
tizado, estético e mais interessante de ser lido, algo
que faça com que meu livro seja um Best-seller.
Meus editores me pressionam.
Eu comecei a descrever sobre
o quarto de Jean porque me
lembrei subitamente de meu
grande amigo, aqui sentando
à mesa, pensando em alguma
estória interessante para escrever.
E ainda tem o fato que eu sempre
dizia, embora bêbado, é verdade,
que escrevia a vida de Jean-Baptist
Antony, um grande homem, cujas
ideias sempre me foram aulas de
fenomenologia e de política.
(sou um péssimo escritor, vocês
puderam perceber isto quando eu
comecei a descrever relativamente
bem acerca Jean-Baptist e passe
subitamente a falar sobre nossa
relação. Foi uma mudança estranha
e literariamente incoerente!).
Estou aqui no meu quarto, à minha
escrivaninha, pensando no que
escreverei acerca de Jean. Afinal,
o livro é sobre ele, e não sobre mim!
Bem, talvez eu possa começar a
dizer como ele era antes dela,
a mulher que ferrou sua vida. Lyla.
Umas das grandes característas
de Jean era sua fidelidade. Sempre
conversávamos a este respeito.
Lembro-me que sempre dizia para
ele que sua fidelidade inda lhe
ferraria um dia, e ele ria de mim,
afirmando que embora lhe ferrasse,
ele jamais deixaria de ser fiel à um
amigo- pena que isto não aconteceu,
depois dela, nunca mais foi o mesmo.
É bem verdade que ainda é uma das
pessoas mais fieis de que tenho notícias,
porém percebe-se no seu olhar, no
seu comportamento que ele pouco
se inporta com este valor.
O altruísmo de Jean sempre chamava a
atenção de todos, e a mim exumava inveja.
Quantas e quantas vezes o vi deixando de
fazer algo que lhe era importante porque
‘tinha’ de prestar assistência a outra pessoa
qualquer- ele nunca teve, nunca foi obrigado
a porra nenhuma!
Mas essas personalidades,
essas características se foram,
juntamente com sua alegria,
com seu modo de ser.
(ainda não falei que escrevo poemas.
Sim, por isto que os editores me aporrinham.
Eu fiz alguns poemas que me renderam certa
notoriedade e por isso fui convidado a participar
de uma coletânea de poetas contemporâneos
à maneira de Bukowski- coitados deles ao
pensar que sou poeta, escrito. Depois dento,
entenderam, não sei ao certo por que, que
eu seria capaz de escrever um livro todo!).
Quando digo que Jean mudou é porque o conheço,
não só de ouvir falar, somos amigos, desde criança.
Na verdade ele sempre afirmou que fui e sou seu
único amigo- claro que há certo exagero de sua
parte. Existem, sim, os que lhe amam, que muito lhe amam.
Veja bem, estou a falar de um
homem que tem mais de cinq-
üenta anos. Custo mesmo a cr-
er que Lyla foi capaz de arruina-
r a vida dele. Pois, não era muit-
o do feitio de Jean dar muito po-
der as pessoas, sobretudo Às mu-
lheres amadas- ele sabia mais qu-
e eu que não se faz isso! Se foss-
e para eu dar um palpite, sugerir u-
ma tese, diria que quem o arruinou
foi ele mesmo. Ele passou a beber
pra caramba, depois que descobriu
que... (será que devo falar sobre
isto, é tão íntimo, não é de minha
conta, quem se interessa em saber
destas histórias?).