O Demarchelier noturno

Os espelhos estão ali dispostos como acusadores,

Por isso a penumbra que a imagem adultera,

Tornando abstratos velhos pecados conhecidos

Que chegam a ser belos sob a luz das velas.

E os espelhos gritam a turbulência da noite,

De danças soltas de paixões sem freio,

Como fantasmas ariscos em fuga das tumbas,

Ocultando seus rostos da ira do meu desejo.

E o febril dos pulos na madeira antiga,

Reverbera seu som no meu copo de wisky.

Se apenas impassível observo a selvageria,

Minha bebida treme indiferente à minha letargia.

E sobre o balcão onde repouso as mãos contidas,

Escorrem a luz e os reflexos da vida,

Pois a vida é a mesma, seja na dança ou na vertigem,

Agora menos definitiva e pouco explicativa,

Vista na face gasta de uma superfície plana e polida.

Ao meu lado um azul tão antigo e sufocante,

De um veludo anacrônico de uma senhora perdida,

Olhando o deserto insólito de almas dançarinas,

Com seus cabelos antigos pesos no como não mais se faz.

Seus brincos balançam quando sua cabeça se agita,

Vejo seu rosto, mas seu olhos, não há mais.

Foram deixados de lado quando a velhice chegou,

E a cegueira se deu por opção contra o estado das coisas.

A dança no salão com som de estocadas no peito,

Passa despercebida como a chegada de mais uma bebida.

E a cena composta de minha mão estendida e vacilante

Em direção a um copo que hesito em levar à boca,

E da mulher antiga que ignora o que há em minha mente,

É desenhada à distância pelo terceiro elemento,

Cujo pincel atinge a tela com tintas improváveis,

E fotografa o instante de minha espera adormecida.

Quando na tela, morremos eu e a senhora de azul,

Finalizada a escrita com palavras para não serem lidas,

Continuou a vida no salão de danças nobres,

E o meu copo trêmulo cujo degelo inutilizou a bebida.

Mas eis que fala o artista, com sua verdade alternativa,

E de dentro da estática lógica das coisas,

Surge o frio em meu estômago covarde.

Um grito no escuro, de um lugar de espelhos sem função,

Faz parar a dança, cessa a música e meus olhos despertam.

Lá, onda se abre o clarão, onde antes estava minha indiferença,

Nasce a flor apunhalada e triste, sofrida e quase morrendo.

A mulher de cabelos amarelos e vestido branco,

Estirada ao chão, falava da luz entre gritos e lamentos.

Morreu bem rápido, tingindo o chão amarelo,

Pelo punho esquerdo de um poeta perdido.

Meus olhos encontram a outra morte refletida

Nas luzes acesas e nos espelhos gastos pela vida.

Só posso conter meu grito, no teatro de meu canto escuro,

Segurando bem firme o copo que me prende ao balcão,

Desejando não mais estar ali, nem saber

Que aquela apunhalada estirada na superfície dura e fria,

É minha poesia errante dentro de uma mente vazia.