roman noir

estava eu sentado num banco de praça

fumando e matutando sobre o tudo sobre o nada

sobretudo sobre o que entre tudo e nada se situa

era uma noite abandonada sem nuvens sem lua

a luz fosca dos lampiões de rua dava ao local

um ar irreal de filme expressionista alemão

quando de súbito ela apareceu no meu campo visual

vinda de não sei onde se da seda do céu

do boteco da esquina ou das entranhas do chão

usava saia de couro preto e blusa decotada

deixando suspeitar tesouros de piranha

no dedo pai-de-todos um baita anel de ouro

onde brilhava um rubi grande como um besouro

e vermelho como grito de mulher esfaqueada

o barulhinho seco de seus saltos altos

pontilhava a noite o silêncio o asfalto

como máquina de costura em slow-motion

enveredou-se por uma ruazinha torta desapareceu

tambor no peito levantei-me às pressas e a segui

e pude ver que do calcanhar ao mistério das alturas

corria em cada meia uma retíssima costura

multiplicando e dividindo a perfeição das pernas

e se o galbo da beldade estava na flor da idade

o andar decidido era de um tanque de guerra

vai que na bolsa remexe e saca uma bereta

quase me mando fiquei porque sou muito curioso

chegamos ao fim da ruela onde havia uma boate

com ares de desmoronar-se um protótipo de espelunca

cujo nome até hoje não sei e não saberei nunca

posto que morto estava o néon do letreiro

o porteiro mais parecia dono de navio negreiro

cúmplices cumprimentam-se a beldade e cérbero

e ela penetra no antro como se toda noite o fizesse

tentei fazer o mesmo o porteiro me barrou

temerário insisti tal soco levei que desmoronei

acordei zonzo com os berros do despertador

anunciando que estava na hora de me levantar

e não perder o emprego por chegar atrasado

é grande a responsa de gerente de supermercado

já estava por sair dou de cara com o carteiro

um telegrama pra mim isso era fato inédito

surpreso abro e leio um série de ameaças

que nunca mais pusesse os pés naquela praça

nem o bedelho onde não tivesse sido chamado

ao princípio tive medo mas botei ele de lado

e mais cedo ou mais tarde eu juro que desvendo

o mistério da beldade da boate e da bereta

e pra maior eficiência até já me inscrivi

num curso de detetive por correspondência

e quem sabe ainda acabo abrindo uma agência

e o final de toda esta estranha história

já o vão saber ao lerem minhas memórias.

by@wanda lins

(D.A.)reservados