ANOITECER
ANOITECER
Não me agitem!
Deixem-me tranquilo
No meu canto
Devo estar senil
Ah! O que eu amei
Depois de Abril
O que eu escrevi
O que eu sonhei...
Não me agitem!
Deixem-me sentir
De olhos fechados
Sem tactear
Todos os portos
Todos os corpos
Que ficaram por abrir
Todo o mar
Que não pude navegar
Não abram as persianas
Da minha câmara escura
Estão lá todas as imagens
Todas as personagens
Da minha ternura
Está lá a aventura
Da minha vida...
Não corrompam os ficheiros
Que tanto custaram a gravar...
O primeiro verbo amar
A primeira lágrima
A primeira dor
A primeira esquina,
Que tive de dobrar,
O primeiro sorriso de criança
A primeira esperança
O primeiro sonho,
Que não consegui realizar
O primeiro pesadelo
Foi tão medonho
Que nem me atrevo a repetir
Não ataquem, por favor,
Os meus executáveis
Mesmo se desagradáveis
Têm de existir
São eles que me permitem
Sobreviver...
Escrever...
Subsistir...
E, às vezes, são notáveis
Na forma de se exprimir...
Não me agitem
Posso ser perverso!
Quantas vezes faço da dor
O reverso do amor
Quantas vezes o meu verso
É todo o universo
Que não pinto
Quantas vezes o sorriso
O riso tresloucado
Do mais perfeito juízo
É o retracto passado
Vivido sem paraíso
Não me agitem
Quanto muito
Sussurrem no ouvido
Todo o prazer sentido...
Digam tudo...
O que tiver de ser
Sobretudo
Antes do amor
Depois...
Revistam a urna de veludo
E deixem-me anoitecer...