ANOITECER

ANOITECER

Não me agitem!

Deixem-me tranquilo

No meu canto

Devo estar senil

Ah! O que eu amei

Depois de Abril

O que eu escrevi

O que eu sonhei...

Não me agitem!

Deixem-me sentir

De olhos fechados

Sem tactear

Todos os portos

Todos os corpos

Que ficaram por abrir

Todo o mar

Que não pude navegar

Não abram as persianas

Da minha câmara escura

Estão lá todas as imagens

Todas as personagens

Da minha ternura

Está lá a aventura

Da minha vida...

Não corrompam os ficheiros

Que tanto custaram a gravar...

O primeiro verbo amar

A primeira lágrima

A primeira dor

A primeira esquina,

Que tive de dobrar,

O primeiro sorriso de criança

A primeira esperança

O primeiro sonho,

Que não consegui realizar

O primeiro pesadelo

Foi tão medonho

Que nem me atrevo a repetir

Não ataquem, por favor,

Os meus executáveis

Mesmo se desagradáveis

Têm de existir

São eles que me permitem

Sobreviver...

Escrever...

Subsistir...

E, às vezes, são notáveis

Na forma de se exprimir...

Não me agitem

Posso ser perverso!

Quantas vezes faço da dor

O reverso do amor

Quantas vezes o meu verso

É todo o universo

Que não pinto

Quantas vezes o sorriso

O riso tresloucado

Do mais perfeito juízo

É o retracto passado

Vivido sem paraíso

Não me agitem

Quanto muito

Sussurrem no ouvido

Todo o prazer sentido...

Digam tudo...

O que tiver de ser

Sobretudo

Antes do amor

Depois...

Revistam a urna de veludo

E deixem-me anoitecer...

ressoa
Enviado por ressoa em 13/07/2005
Código do texto: T33709