Piedosa 
                                              A Nestor Vitor        
 
    Não sei por que, magoada Flor sem glória,
     A tua voz de trêmula meiguice
     Desperta em mim a mocidade flórea
     De sentimentos que não têm velhice.
      
     Guslas de um céu remotamente mudo
     Gemem plangentes nessa voz que voa
     E através dela, abençoando tudo,
     Um luar de perdões desabotoa.
      
     Vejo-te então sublimemente triste
     E excelsa e doce, num anseio lento,
     Vagando como um ser que não existe,
     Transfigurada pelo Sofrimento.
      
     Mas, não sei como, vejo-te por brumas,
     Além da de ouro constelada Porta,
     Na ondulação das lívidas espumas,
     Morta, já morta, muito morta, morta...
      
     E sinto logo esse supremo e sábio
     Travo da dor, se morta te antevejo,
     Essa macabra contração de lábio
     Que morde e tantaliza o meu desejo.
      
     Fico sempre a cismar, se tu morresses
     Que angustia fina me laceraria,
     Que músicas de céus saudosos, desses
     Céus infinitos sobre mim fluiria...
      
     Que anjos brancos soberbos, deslumbrantes,
     Resplandecentes nos broqueis das vestes,
     Claros e altos voariam flamejantes
     Para buscar-te, dos Azuis Celestes.
      
     Sim! Sim! Pois então tanta e atroz fadiga,
     Tanta e tamanha dor convulsa e cega
     Há de ficar sem doce luz amiga,
     Da lágrima dos céus, que tudo rega?!
      
     As batalhas crueis do sacrifício,
     As transfigurações dos teus calvários,
     Essas virtudes, rolarão com o vício
     Pelos mesmos abismos tumultuários?!
       
     Toda a obscura pureza dos teus feitos,
     A tua alma mais simples do que a água,
     Essa bondade, todos os eleitos
     Sentimentos que tens de flor da Mágoa;
      
     Nada se salvará jamais, mais nada
     Se salvará, no instante derradeiro?!
     Ó interrogação desesperada,
     Errante, errante pelo mundo inteiro!
      
     Nada se salvará da essência viva
     Que tudo purifica e refloresce;
     De tanta fé, de tanta luz altiva
     De tanta abnegação, de tanta prece?!
       
     Nada se salvará, piedosa e pobre
     Flor desdenhada pelo Mal ufano,
     Só o meu coração e verso nobre
     Hão de abrigar-te do desprezo humano.
      
     Na transcendência do teu ser, tão alta,
     Vejo dos céus como que os dons, a esmola,
     O indefinido que de ti ressalta
     Me prende, me arrebata e me consola.
      
     E sinto que a tua alma desprendida
     Do terrestre, do negro labirinto
     Melhor há de adorar-me na outra
     Vida Melhor sentindo tudo quanto eu sinto.
      
     Porque não é por sentimento vago,
     Nem por simples e vã literatura,
     Nem por caprichos de um estilo mago
     Que sinto tanto a tua essência pura.
      
     Não é por transitória veleidade
     E para que o mundo reconheça,
     Que sinto a tua cândida Piedade,
     As auréolas de Luz dessa cabeça.
      
     Não é para que o mundo te proclame
     Maravilha das mártires, das santas
     Que eu digo sempre ao meu Amor que te ame
     Mesmo através de tantas ânsias, tantas.
      
     Nem é também para que o mundo creia
     Na humilde limpidez da tua alma justa,
     Que o mundo, vil e vão, desdenha e odeia
     Toda a humildade, toda a crença augusta.
      
     Mas sinto porque te amo e te acompanho
     Pelas montanhas de onde sóis saudosos
     Clarões e sombras de um mistério estranho
     Espalham, como adeuses carinhosos.
      
     Sinto que te acompanho, que te sigo
     Tranqüilo, calmo desses vãos rumores
     E que tu vais embalada comigo,
     Na mesma rede de carinho e dores.
      
     Sinto os segredos do teu corpo amado,
     Toda a graça floral, a graça breve,
     Todo o composto lânguido, alquebrado
     Do teu perfil de áureo crescente leve.
      
     Sinto-te as linhas imortais do flanco,
     E as ondas vaporosas dos teus passos
     E todo o sonho castamente branco
     Da volúpia celeste desses braços.
      
     Sinto a muda expressão da tua boca
     Feita num doce e doloroso corte
     De beijo dado na veemência louca
     Dos céus do gozo entre o estertor da morte.
      
     Sinto-te as nobres mãos afagadoras,
     Riquezas raras de um valor secreto
     E mãos cujas carícias redentoras
     São as carícias do supremo Afeto.
      
     Sinto os teus olhos fluidos, de onde emerge
     Uma graça, uma paz, tamanho encanto,
     Tão brando e triste, que a minha alma asperge
     Em suavíssimos bálsamos de pranto.
      
     Uns olhos tão etéreos, tão profundos,
     De tanta e tão sutil delicadeza
     Que parecem viver lá n’outros mundos,
     Longe da contingente Natureza.
      
     Olhos que sempre no tremendo choque
     Dos sofrimentos íntimos, latentes,
     Tem esse toque amigo, o velho toque
     Original das lágrimas ardentes.
      
     Ah! sÓ eu vejo e sinto esse desvelo
     Que transfigura e faz o teu martírio,
     O sentimento amargurado e belo
     Que e já, talvez, quase mortal delírio...
      
     Sinto que a mesma chama nos abraça,
     Que um perfume eternal, casto, esquisito,
     Circula e vive com divina graça
     Dentro do nosso trêmulo Infinito.
      
     E tudo quanto me sensibiliza,
     Fere, magoa, dilacera, punge,
     Tudo no teu olhar se cristaliza,
     No teu olhar, no teu olhar que unge.
      
     Sinto por ti o mais febril e intenso
     Carinho quase louco, doentio...
     Carinho singular, curioso, imenso,
     Que deixa na alma um resplendor sombrio.
      
     E e de tal forma esse carinho raro,
     De tal encanto e tão sagrada essência,
     De tal Piedade e tal Perdão preclaro,
     Que canta na estrelada Refulgência.
      
     Ah! nunca saberás quanto exotismo
     De sentimento me alanceia e pulsa,
     Vibra violinos de sonambulismo
     Nest'alma ora serena, ora convulsa!
      
     Tens luz de lua e tens gorjeios de ave
     No mundo virginal dos meus sentidos,
     E és sonho, sombra de Angelus suave
     Nos nossos mútuos e comuns gemidos.
      
     E sonho, sombra de Angelus, tão brandos,
     Imortalmente tão indefiníveis
     Que todos os terrores execrandos
     Cobrem-se para nós de íris sensíveis.
      
     É assim que eu te sinto, erma, sozinha,
     Frágil, piedosa, nos singelos brilhos
     Erguendo aos braços, nobremente minha,
     Os dolentes troféus dos nossos filhos.
      
     Erguendo-os como cálices amargos
     De um vinho ideal de já mortas quimeras,
     Para além destes céus mudos e largos
     Na ampla misericórdia das Esferas! 

                                        (de “Faróis”)
 

Créditos:
www.biblio.com.br/

www.bibvirt.futuro.usp.br   

www.dominiopublico.gov.br


João da Cruz e Sousa (Brasil)
Enviado por Helena Carolina de Souza em 27/11/2011
Código do texto: T3359871