Pandemonium
                              A Maurício Jubim
                 Em fundo de tristeza e de agonia
                 O teu perfil passa-me noite e dia.        

 
    Aflito, aflito, amargamente aflito,
     Num gesto estranho que parece um grito.       
 
     E ondula e ondula e palpitando vaga,
     Como profunda, como velha chaga.       
 
     E paira sobre ergástulos e abismos
     Que abrem as bocas cheias de exorcismos.      
 
     Com os olhos vesgos, a flutuar de esguelha,
     Segue-te atrás uma visão vermelha.       
 
     Uma visão gerada do teu sangue
     Quando no Horror te debateste exangue,       
 
     Uma visão que é tua sombra pura
     rodando na mais trágica tortura.       
 
     A sombra dos supremos sofrimentos
     Que te abalaram como negros ventos.       
 
     E a sombra as tuas voltas acompanha
     Sangrenta, horrível, assombrosa, estranha.       
 
     E o teu perfil no vácuo perpassando
     Vê rubros caracteres flamejando.       
 
     Vê rubros caracteres singulares
     De todos os festins de Baltazares.       
 
     Por toda a parte escrito em fogo eterno:
     Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Inferno!      
 
     E os emissários espectrais das mortes
     Abrindo as grandes asas flamifortes...       
 
     E o teu perfil oscila, treme, ondula,
     Pelos abismos eternais circula...       
 
     Circula e vai gemendo e vai gemendo
     E suspirando outro suspiro horrendo.       
 
     E a sombra rubra que te vai seguindo
     Também parece ir soluçando e rindo.       
 
     Ir soluçando, de um soluço cavo
     Que dos venenos traz o torvo travo.       
 
     Ir soluçando e rindo entre vorazes
     Satanismos diabólicos, mordazes.       
 
     E eu já nem sei se e realidade ou sonho
     Do teu perfil o divagar medonho.       
 
     Não sei se e sonho ou realidade todo
     Esse acordar de chamas e de lodo.       
 
     Tal é a poeira extrema confundida
     Da morte a raios de ouro de outra Vida.       
 
     Tais são as convulsões do último arranco
     Presas a um sonho celestial e branco.       
 
     Tais são os vagos círculos inquietos
     Dos teus giros de lágrimas secretos.       
 
     Mas, de repente, eis que te reconheço,
     Sinto da tua vida o amargo preço.       
 
     Eis que te reconheço escravizada,
     Divina Mãe, na Dor acorrentada.       
 
     Que reconheço a tua boca presa
     Pela mordaça de uma sede acesa       
 
     Presa, fechada pela atroz mordaça
     Dos fundos desesperos da Desgraça.       
 
     Eis que lembro os teus olhos visionários
     Cheios do fel de bárbaros Calvários.       
 
     E o teu perfil asas abrir parece
     Para outra Luz onde ninguém padece...       
 
     Com doçuras feéricas e meigas
     De Satãs juvenis, ao luar, nas veigas.       
 
     E o teu perfil forma um saudoso vulto
     Como de Santa sem altar, sem culto.       
 
     Forma um vulto saudoso e peregrino
     De força que voltou ao seu destino.       
 
     De ser humano que sofrendo tanto
     Purificou-se nos Azuis do Encanto.       
 
     Subiu, subiu e mergulhou sozinho,
     Desamparado, no fetal caminho.        
 
     Que lá chegou transfigurado e aéreo,
     Com os aromas das flores do Mistério.       
 
     Que lá chegou e as mortas portas mudas
     Fez abalar de imprecações agudas...       
 
     E vai e vai o teu perfil ansioso,
     De ondulações fantásticas, brumoso.       
 
     E vai perdido e vai perdido, errante,
     Trêmulo, triste, vaporoso, ondeante.
      
     Vai suspirando, num suspiro vivo
     Que palpita nas sombras incisivo...       
 
     Um suspiro profundo, tão profundo
     Que arrasta em si toda a paixão do mundo.       
 
     Suspiro de martírio, de ansiedade,
     De alívio, de mistério, de saudade.       
 
     Suspiro imenso, aterrador e que erra
     Por tudo e tudo eternamente aterra...       
 
     O pandemonium de suspiros soltos
     Dos condenados corações revoltos.       
 
     Suspiro dos suspiros ansiados
     Que rasgam peitos de dilacerados.       
 
     E mudo e pasmo e compungido e absorto,
     Vendo o teu lento e doloroso giro,
 
Fico a cismar qual é o rio morto
Onde vai divagar esse suspiro. 

                                    (de “Faróis”)
 

Créditos:
www.biblio.com.br/

www.bibvirt.futuro.usp.br   

www.dominiopublico.gov.br


João da Cruz e Sousa (Brasil)
Enviado por Helena Carolina de Souza em 27/11/2011
Código do texto: T3359868