ANTOLOGIA POÉTICA DE GRAGÓRIO DE MATOS GUERRA

1. OBRA SACRA

I

A Jesus Cristo Nosso Senhor

Pequei Senhor, mas não porque hei pecado,

Da vossa alta clemência me despido:

Porque, quanto mais tenho delinqüido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,

A abrandar-vos sobeja um só gemido:

Que a mesma culpa, que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e já cobrada

Glória tal e prazer tão repentino

Vos deu, como afirmais na sacra história:

Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada;

Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.

II

Buscando a Cristo

A vós correndo vou, braços sagrados,

Nessa cruz sacrossanta descobertos;

Que, para receber-me, estais abertos,

E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados,

De tanto sangue e lágrimas cobertos,

Pois, para perdoar-me, estais despertos,

E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,

A vós, sangue vertido para ungir-me,

A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me.

A vós, lado patente, quero unir-me,

A vós, cravos preciosos, quero atar-me,

Para ficar unido, atado e firme.

XIX

Achando-se um braço perdido do Menino Deus de N. Senhora das Maravilhas, que desacataram infiéis na Sé da Bahia.

O todo sem a parte, não é todo;

A parte sem o todo não é parte;

Mas se a parte o faz todo, sendo parte,

Não se diga que é parte sendo todo.

Em todo o sacramento está Deus todo,

E todo assiste inteiro em qualquer parte,

E feito em partes todo em toda a parte,

Em qualquer parte sempre fica todo.

O braço de Jesus não seja parte,

Pois que feito Jesus em partes todo,

Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo

Um braço que lhe acharam sendo parte,

Nos diz as partes todas deste todo.

2. OBRA LÍRICA

I

A Dona Ângela, uma das três filhas de Vasco de Sousa de Paredes, e sua mulher Dona Vitória, de tão rara formosura, que D. João de Alencastro, quando foi deste governo para Lisboa, levou consigo um retrato seu.

Não vira em minha vida a formosura,

Ouvia falar nela cada dia,

E ouvida, me incitava e me movia

A querer ver tão bela arquitetura:

Ontem a vi, por minha desventura

Na cara, no bom ar, na galhardia

De uma mulher, que em anjo se mentia,

De um Sol que se trajava em criatura.

Matem-me, disse eu, vendo abrasar-me

Se esta a cousa não é, que encarecer-me

Sabia o mundo, e tanto exagerar-me:

Olhos meus, disse então, por defender-me,

Se a beleza heis de ver para matar-me,

Antes, olhos, cegueis, do que eu perder-me.

XVII

A Maria dos Povos, sua futura Esposa.

Discreta e formosíssima Maria,

Enquanto estamos vendo a qualquer hora,

Em tuas faces a rosada Aurora,

Em teus olhos e boca, o Sol e o dia:

Enquanto, com gentil descortesia,

O ar, que fresco Adônis te namora,

Te espalha a rica trança voadora,

Da madeixa que mais primas te envia:

Goza, goza da flor da mocidade,

Que o tempo troca, a toda a ligeireza,

E imprime a cada flor sua pisada.

Oh não aguardes, que a madura idade

Te converta essa flor, essa beleza,

Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

CI

À instabilidade das cousas do Mundo.

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,

Depois da luz, se segue a noite escura,

Em tristes sombras morre a formosura,

Em contínuas tristezas a alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?

Se é tão formosa a luz, por que não dura?

Como a beleza assim se transfigura?

Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na luz, falta a firmeza;

Na formosura não se dê constância:

E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,

Pois tem qualquer dos bens por natureza,

A firmeza somente na inconstância.

3. OBRA SATÍRICA

I

A cidade da Bahia.

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante

Estás e estou do nosso antigo estado,

Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado,

Rica te vi eu já, tu a mim abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,

Que em tua larga barra tem entrado,

A mim foi-me trocando e tem trocado

Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente

Pelas drogas inúteis, que abelhuda

Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh, se quisera Deus, que, de repente,

Um dia amanheceras tão sisuda

Que fora de algodão o teu capote!

IV

Aos Caramurus da Bahia.

Um calção de pindoba, a meia zorra,

Camisa de urucu, mantéu de arara,

Em lugar de cotó, arco e taquara,

Penacho de guarás, em vez de gorra.

Furado o beiço, sem temer que morra

O pai, que lho envasou Cuma titara,

Sendo a mãe que a pedra lhe aplicara

Por reprimir o sangue que não corra.

Alarve sem razão, bruto sem fé,

Sem mais leis que a do gosto, quando erra,

Da Paiaiá tornou-se em Abaité.

Não sei como acabou, nem que guerra:

Só sei que deste Adão da Massapé,

Procedem os fidalgos desta terra.

XIV

Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia.

A cada canto um grande conselheiro,

Que nos quer governar cabana e vinha;

Não sabem governar sua cozinha,

E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem freqüente olheiro

Que a vida do vizinho e da vizinha,

Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,

Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,

Trazidos pelos pés aos homens nobres,

Posta na palma toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,

Todos os que não furtam, muito pobres;

Eis aqui a cidade da Bahia.

GREGÓRIO DE MATOS GUERRA
Enviado por PROF MOREYRA em 08/11/2011
Código do texto: T3323805
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