A POESIA MANEIRISTA DE FRANCISCO RODRIGUES LOBO

1. HABILIDADES

1. Explicar as características do Maneirismo;

2. Estabelecer diferenças entre o Maneirismo e o Barroco;

3. Observar as influências políticas, econômicas, sociais e filosóficas nas manifestações literárias do período estudado;

4. Identificar o estilo lírico e satírico nos textos poéticos do Maneirismo.

É comum haver certa confusão – compreensível – ao se tentar distinguir o estilo de época chamado Barroco e o estilo literário e artístico tido como Maneirismo, pois ambos se complementam e se entrelaçam. No entanto, é importante dizer que essa confusão precisa e pode ser desfeita.

O Maneirismo foi o primeiro sintoma da decadência do Classicismo Renascentista. Foi quando houve uma primeira quebra do equilíbrio e da simplicidade pregada pelos renascentistas, e se manifestou primeiramente na pintura, nas primeiras décadas do século XV, mais exatamente com o pintor El Greco. A clareza e a proporção perfeita das formas na Arte renascentista começaram a ser colocadas em xeque. Dá-se lugar, aos poucos, a tons obscuros, a atmosferas tensas, a corpos agora em contorções improváveis. Nada mais seria tão claro nem muito menos simples na forma de retratar a realidade, com o Maneirismo.

Na poesia, o Maneirismo teve como dois de seus maiores representantes Luís Vaz de Camões, com sua lírica, e Francisco Rodrigues Lobo.

O estilo maneirista, na Literatura, manifesta-se como ponto de cisão do Classicismo por prezar, sobretudo, o contraste, o paradoxo, intrincados o conteúdo e a forma do poema. Os raciocínios claros, simples, do estilo renascentista dão lugar a complexas argumentações e conceituações, com raciocínios de difícil entendimento. Os poemas (normalmente sonetos, de cunho lírico) quanto à métrica e o ritmo, têm a forma binária (ou seja, há uma ligeira, mas perceptível, pausa no meio do verso); e, quanto ao conteúdo, neles se exploram o paradoxo, o oxímoro e a antítese e uma temática voltada para a transitoriedade do tempo. Já a partir dessa característica do Maneirismo é possível perceber que o homem renascentista não é mais tão auto-suficiente, tão crente de sua importância, como se pregava na era do Renascimento.

Por causa dessas características, não se torna difícil confundir Maneirismo e Barroco, entendendo-os como um só. É bom, no entanto, fazer uma distinção entre os dois estilos:

1- Primeiro de tudo, pode-se dizer que Maneirismo foi uma espécie de ponte, de transição, entre o Classicismo Renascentista e o Barroco, mas não pode ser confundido nem com um nem com outro. O Maneirismo foi um traço marcante da poesia lírica clássica humanista e renascentista, retomado e cultuado pelos poetas barrocos.

2- Enquanto o Maneirismo aprofunda-se mais, e com maior seriedade, nos conflitos existenciais e questões filosóficas, distanciando-se bastante das sensações e da realidade física, no Barroco acontece freqüentemente o contrário: o mundo dos sentidos, as sensações externas, o gozo dos prazeres terrenos, a sensualidade, são até obsessivamente explorados.

3- No Barroco há uma tendência para a carnavalização (no sentido amplo, de apelo popular, de certo deboche e sátira, de ludicidade); não é à toa que muitos dos representantes do Barroco na Literatura, como, por exemplo, Gregório de Matos, apelaram para as sátiras. Já no Maneirismo há uma tendência para a introspecção, para certa frieza e profunda melancolia.

4- Por fim, enquanto para o poeta maneirista a linguagem intricada e complexa, com suas contradições dramáticas, era real sintoma do seu estado de alma cheia de contradições; para os poetas barrocos freqüentemente os recursos das metáforas, das antíteses, das sinestesias serviam tão somente como um jogo de palavras, ou simples ornamentos poéticos.

Ludicidade: de lúdico (jogo, entretenimento, descontração).

Carnavalização: influência do carnaval em diferentes contextos culturais pela inversão dos códigos vigentes, pela ambigüidade das propostas, das imagens e das representações, pela mistura e pela valorização da força erótica, do riso, do inusitado.

Simétrico: de simetria; harmonia resultante de certas combinações e proporções regulares.

O poema abaixo é de Petrarca, poeta italiano que viveu durante a Idade Média e que é considerado o inspirador da poesia maneirista. Leia-o e tente perceber melhor as características do Maneirismo.

Não tenho paz nem posso fazer guerra;

Temo e espero e do ardor ao gelo passo

E vôo para o céu e desço à terra;

E nada aperto e todo mundo abraço.

Prisão que nem se fecha ou se descerra,

Nem me retém nem solta o duro laço

Entre livre e submissa esta alma erra,

Nem é morto nem vivo o corpo lasso.

Vejo sem olhos, grito sem ter voz;

E sonho perecer e ajuda imploro:

A mim odeio e a outrem amo após.

Sustento-me de dor e rindo choro;

A morte como a vida enfim deploro

E neste estado sou, Dama, por Vós.

Numa ligeira análise do poema acima, podemos dizer que:

a) O jogo de contrastes que caracteriza o desequilíbrio aparece em expressões com termos que, a princípio, são irreconciliáveis e há em todo o poema: paz/ guerra; ardor /gelo; céu/ terra; aperto/ abraço; vôo/ desço; nada/ todo mundo.

b) As atitudes, estado de espírito, do eu-lírico vão de um extremo a outro, como em “E sonho perecer e ajuda imploro” ou nos três últimos versos da primeira estrofe.

c) Com o verso “Temo e espero e do ardor ao gelo passo”, por exemplo, há sentimentos conflitantes; nele se percebe que ora o eu-lírico anseia e busca por algo, ora tem medo de consegui-lo; do “ardor” (calor, paixão, forte sentimento) ao “Gelo” (frieza, apatia, insensibilidade).

d) Há também estados ou situações de indefinição (dubiedade, incerteza), mais notavelmente em todo o segundo quarteto. Versos como “Prisão que nem se fecha ou se descerra/ Nem me retém nem solta o duro laço”, indicam uma situação em que se está em meio-termo, não é uma coisa nem outra,

e) Temos paradoxos tão radicais que chegam ao inverossímil, porque lida com o logicamente impossível, como no primeiro verso do primeiro terceto “Vejo sem olhos, grito sem voz” e em “Sustento-me de dor e rindo choro”.

f) Em todos os versos há uma bimembração constante mais ou menos perceptível, com uma ligeira pausa no meio do verso, como se pode verificar em “A mim odeio // e a outro amo após/ Visão que nem se fecha // ou se descerra/ Sustento-me de dor // e rindo choro”.

g) Só no último verso vemos que se trata de um poema cujo tema é o amor romântico, dirigido a uma mulher. Neste poema o eu-lírico confessa a sua amada o estado de desordem, de confusão, em que está o seu espírito por amar sua musa.

O amor, nesse poema de Petrarca, é fonte de profundo estado de inquietação, com sentimentos contraditórios, em que o poeta se vê, ao mesmo tempo, angustiado e feliz por amar. Essa visão do sentimento amoroso, os poetas do Barroco irão compartilhar, assim como a forma simétrica do poema. No Brasil, foi notadamente Gregório de Matos, com suas líricas amorosas, quem mais adotou esse tipo de poesia.

Algo semelhante ocorre com Camões em seu poema, como podemos ver no que se segue, bem ilustrativo do Classicismo Renascentista:

Sete anos de pastor Jacó servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

Mas não servia ao pai, servia a ela,

E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,

Passava, contendo-se com vê-la;

Porém o pai, usando de cautela,

Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos

Lhe fora assim negada a sua pastora,

Como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete anos,

Dizendo: - Mais servira, se não fora

Para tão longo amor tão curta a vida.

Note que:

• A pequena narrativa que conta a história de amor de Jacó e Raquel é linear, perfeitamente organizada cronologicamente;

• É um tema simples, tratado com clareza e simplicidade: a espera de um homem apaixonado por sua amada;

• Há relativamente muito pouca quebra na estrutura sintática do poema;

• Apesar dessa simplicidade sintética e semântica, há rigor formal;

• Embora haja uma referência bíblica, o assunto é profano (o amor de um homem por uma mulher).

2. O MANEIRISMO EM PORTUGAL

Se Portugal viveu o seu auge como nação e império nos primeiros 25 anos do século XVI, será nos 25 anos finais que esse país viverá os anos mais difíceis de sua História. Economicamente, começa o seu declínio por não dar maior atenção ao campo e à agricultura, além de o mercantilismo com a Índia ter ficado em baixa. Mas foi no setor político que houve o maior golpe. Com o sonho de transformar novamente Portugal em grande império, D. Sebastião aventura-se e parte para Alcácer-Quibir, porém, desapareceu, gerando uma séria crise sucessória. Até que Felipe II da Espanha assume o controle de Portugal, unificando assim a Península Ibérica. Ou seja, com isso Portugal perde a sua autonomia como nação.

A unificação da Península Ibérica reforça o poder da Contra-Reforma, que reinava na Espanha. Há então o monopólio jesuíta na educação e na censura eclesiástica, que tolhem qualquer avanço científico ou cultural. Com isso, mesmo com os avanços científicos conquistados no resto da Europa, a Península Ibérica retorna às trevas da Idade Média mais obscuras.

É sob esse clima então que se desenvolve a estética barroca em Portugal, sob forte influência espanhola, visto que é a Espanha o maior foco irradiador do novo estilo.

4.3. FRANCISCO RODRIGUES LOBO

Nascido em Leiria após 1580, graduou-se em Leis pela Universidade de Coimbra no ano de 1602. Freqüentando os solares dos Vila-Real e dos Bragança, relacionou-se com a mais alta nobreza do Reino então submetido à coroa espanhola. Em 1621 ou 1622, afogou-se no Tejo, quando um temporal virou o barco em que viajava de Santarém a Lisboa. O bucolismo, em seus ramos lírico-narrativo e doutrinal, é a nota dominante da poesia de Rodrigues Lobo, que se expandiu ainda pelo gênero épico. A trilogia Primavera (1601), O pastor peregrino (1608) e Desenganado (1614), entretecida em prosa e verso segundo a fórmula posta em voga pela Arcádia do napolitano Sanazzaro (1458 – 1530), compõe uma novela pastoril.

O fio condutor são as perambulações do pastor peregrino Lereno, a cujo desengano amoroso somam-se outros episódios de amores infelizes entre casais. A concepção amorosa imperante cinge-se à tópica do neoplatonismo quinhentista. Em sua dez Églogas (1605) soa virgiliana e nostalgicamente, o mito da “ditosa idade de ouro”, quando os homens viviam em idílico contato com a natureza, longe dos vícios e no “sossego das virtudes”. Escritas com o intuito de emendar e corrigir, verbaram “o desprezo das boas artes”, “o ódio e a inveja, os enganos da cobiça”, “a murmuração”, lamentando também as mudanças da fortuna e a efemeridade da vida.

Cônscio do convencionalismo que transformava rústicos aldeões em filósofos, Rodrigues Lobo procura fugir aos clichês da forma, entroncando-se, pelo teor crítico-doutrinal e pela relativa rusticidade dos quadros pastoris, no bucolismo vicentino e mirandino. Ei-lo, então, a instalar seus pastores à sombra da realidade campesina portuguesa e a pôr-lhes na boca um linguajar que, enriquecido por rifões e ditos populares, se aproxima da oralidade. O Condestabre de Portugal (1610), poema épico exaltando os feitos de Nuno Álvares Pereira, inscreve-se na linha de resistência anticastelhana.

Oitavas rimas decassílabas preenchem vinte cantos que, colados à verdade documental e desprezando o maravilhoso pagão, resultam numa biografia rimada. Versejando em português e espanhol, virtuoso no dedilhar as medidas velha e nova sob a égide e inspiração de Sá de Miranda e Camões, Rodrigues Lobo desponta, assim, como último representante do lirismo quinhentista – sem que, todavia, essa circunstância o impeça de albergar, aqui e ali, na teoria e na prática, procedimentos barrocos.

Em seu livro de estréia (Primeira e segunda parte dos romances, 1596), nota-se o influxo gongorino, perceptível ainda nas imagens que sobrecarregam La jornada que (...) Felipe III hizo a Portugal (1623), crônica em versos da visita que o soberano espanhol empreendeu a Lisboa. E suas considerações acerca dos encarecimentos e dos ditos agudos e graciosos, respectivamente nos capítulos V e IX de Corte na aldeia (1619), pagam tributo ao estilo seiscentista, subscrevendo tanto o superlativar a beleza da amada nos moldes de um metaforismo a Góngora, como a engenhosidade e agudeza conceptuais.

4. OBRA

Leiamos agora o mais famoso poema de Francisco Rodrigues Lobo:

Formoso Tejo meu, quão diferente

Te vejo e vi, me vês agora e viste:

Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,

Claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente

A quem teu largo campo não resiste:

A mim trocou-me a vista em que consiste

O meu viver contente ou descontente.

Já que somos no mal participantes,

Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera

Que fôramos em tudo semelhantes!

Mas lá virá a fresca primavera:

Tu tornarás a ser quem eras antes,

Eu não sei se serei quem antes era.

Fazendo uma análise e comentários sobre esse poema de Francisco Rodrigues Lobo, ficará mais fácil entendermos a poesia maneirista.

Nos dois primeiros versos o eu-lírico dirige-se ao Tejo dizendo que este está muito diferente do que era no passado, assim como o próprio eu lírico. Nos dois versos seguintes o eu-lírico “fala” com o rio como se este fosse uma pessoa, um conhecido, que se revêem e se reencontram depois de muito tempo. Note que, segundo o sujeito lírico, o rio (que está turvo) nota-o e o vê triste (no presente), mas o rio já foi claro (límpido, belo), assim como já viu o eu-lírico contente (passado).

No segundo quarteto, o eu-lírico diz a razão da transformação que ambos sofreram. O rio sofreu uma enchente, que descaracterizou o seu aspecto e as suas águas (nos dois primeiros versos). Quanto ao sujeito lírico, alguém ou algo indispensável a ele lhe foi negado ou se foi (dois últimos versos).

Na terceira estrofe (ou primeiro terceto), o eu-lírico diz que, como são unidos o rio e ele no que há de ruim, de desagradável e de triste, bem que também poderiam sê-lo nas coisas boas. O eu-lírico gostaria muito de ser, ele e o rio, semelhantes em tudo. Nessa estrofe há o momento mais dramático (comprovável pelas exclamações), pois já prenunciam o que o sujeito lírico constatará na última estrofe: que, enquanto num futuro (“a fresca Primavera”) o rio naturalmente voltará a ser como antes, esse eu-lírico não tem tanta certeza de que voltará a ser contente; o que ele sofreu pode lhe trazer consequências irreversíveis.

O que chama a atenção, primeiramente, no poema é o jogo de contrários ou as famosas ANTÍTESES que tanto caracterizam o Barroco, com palavras que têm sentido contrários (turvo/claro; triste/contente), além do contraste entre o passado e o presente atestado na forma temporal dos verbos (vejo/vi; viste/vês). Aliás, é justamente sobre essa relação entre passado e presente na existência do rio e do eu-lírico que o poema vai se deter.

Outra característica marcante do Barroco neste poema é a intricada construção formal do poema, com simetrias e paralelismos que acusam um trabalho poético exemplar. O jogo de opostos, a ocorrência de aliterações na primeira estrofe, há nos textos do estilo barroco, e caracterizam o que se chama nessa escola de Cultismo.

É importante notar que esse virtuosismo formal, esse culto à forma não é feito de forma gratuita. As simetrias e principalmente as antíteses refletiam a alma do poeta, não eram meros ornamentos desprovidos de significado.

E por fim, no poema de Francisco Rodrigues Lobo há um tema caro e muito recorrente no Barroco: a questão da fugacidade do tempo e da transformação das coisas, que tomam normalmente um caráter pessimista, mórbido até para os escritores barrocos.

Inicialmente, o sujeito lírico invoca o rio Tejo, anunciando-lhe mudanças: as águas do rio, claras num momento passado, estão agora turvas; da mesma forma, o rio já o vira contente, a ele, sujeito lírico, que agora está triste. Nesse primeiro quarteto, atente para o relacionamento entre as palavras de sentido oposto (turvo/claro; triste/contente); as antíteses; e para a disposição simétrica dos elementos presentes em cada um dos versos, que são sempre bimembres (formados por duas partes claras). Oposições, simetria e bimembração reforçam o contraste entre o que foi e o que é: rio e homem apresentavam, no passado, características opostas ao que mostram agora.

Na segunda estrofe, notamos claramente a simetria de construção entre os dois primeiros e os dois últimos versos: naqueles, anuncia-se a causa das mudanças sofridas pelo Tejo (“a grossa enchente”); nestes, as origens das transformações sofridas pelo eu-lírico (“a vista em que consiste o meu viver contente ou descontente”; referência à contemplação de algo ou alguém indispensável; provavelmente a mulher amada).

O primeiro terceto aproxima definitivamente homem e rio, preparando por meio de uma exclamação a quarta estrofe, cuja conjunção inicial “mas” antecipa novo contraste: no futuro (“a fresca Primavera”), o Tejo certamente completará seu ciclo, tornando a ser como era (“como era de antes”); já o eu-lírico não tem a mesma convicção em relação ao próprio destino, incerto em virtude das transformações por que passara.

Leiamos agora outros poemas de Francisco Rodrigues Lobo:

ADEUS DE LERENO AO LIS

Fermoso rio Lis, que de contente

Estais detendo as águas vagarosas,

Por não passar daqui vossa corrente,

Entre essas ondas claras, duvidosas,

Levai ao largo mar, com turva vela,

Tristes queixumes, lágrimas queixosas.

Enquanto descansais na branca areia,

Ouvi um pastor triste e magoado

Que vai perder a vida em terra alheia.

Sua ventura o manda desterrado;

Não se pode saber que culpa teve,

Que amor, que foi juiz, era o culpado.

Se a tanta sem-razão mágoa se deve,

Ouvi a voz de cisne derradeira

Que inda que é grande a dor, há de ser breve.

Vós ninfas que morais nesta ribeira,

Nessas lapas cobertas e escondidas

Do mirto, faias, freixos e aveleira,

Seja de amor sentiste as feridas,

E quando crista um triste apartamento

Que, para dar mil mortes, dá mil vidas,

Agora que se cala o surdo vento

E o rio enternecido com meu prato

Detém seu vagaroso movimento,

Vinde a gozar da terra o verde manto,

Vereis da natureza o mor tesouro

E ouvireis as tristezas de meu canto,

Enquanto Apolo com seus raios de ouro

Enxugando estará com nova inveja

Vosso brando cabelo crespo e louro.

Antes que o descontente espírito seja

Apartado da doce companhia,

Consenti, ninfas belas, que vos veja.

Não vos verei porém como vos via,

Ora fugindo às feras da montanha,

Ora prendendo os peixes na água fria.

Chorando vos verei, pois dor tamanha

Não há como deixar a própria terra

Por ir buscar a morte em terra estranha.

Penedos, que pendeis desta alta serra,

De verde erva e de musgos revestidos,

A que os ventos em vão moverão guerra:

Vós declives outeiros repartidos

Com longes amorosos, ledos portos,

Só pela saudade conhecidos;

Vales, que de mil árvores cobertos

Abris caminha às cristalinas fontes

Que os alvos seixos deixam descobertos;

Vós, ladeiras incultas, e altos montes

Que coroados sois de altos pinheiros

E a cor tomando estais aos horizontes,

Pastos, cabanas, gados, pegureiros,

Pastores deste vale verde; ameno,

Doces amigos, doces companheiros

Aparta-se de vós, triste, Lereno,

Forçado dos poderes da ventura,

Contra quem seu poder foi tão pequeno.

A Deus o monte, o prado, a espessura,

A Deus o rio, a fonte cristalina,

A Deus as plantas, flores e a verdura.

Já no vale, no monte e na campina

Os pastores tanger me ouvirão

A minha desejada sinfonia.

Já nas ardentes sestas do verão

As ovelhas à sombra do arvoredo

O pasto por me ouvir não deixarão.

Já debaixo do vão deste penedo,

Olhando os cordeirinhos que pastavam,

Não cantarei de amor contente e ledo.

E as pastoras que a ouvir-me se ajuntavam,

Já me não tecerão verdes capelas

Com que por vencedor me coroavam.

Já nem na noite á vista das estrelas,

Nem quando o belo Sol claro aparece

Louvores me ouvirão das ninfas belas.

Já o vento que, ouvindo-te, emudece,

Entre os ecos da doce Filomena

Não levará meus ais donde os ofereço.

Tomai o curso atrás, águas do Lena,

Apesar dessa rocha que ameaça

Vossa clara corrente tão serena.

Que não vos tirará de vossa graça

A sombra desse outeiro tão temido,

Como me tira a vida a sorte escassa.

De vós, serenas águas, me despido,

De vós não perderei nunca a lembrança,

Fazendo desmentir nesta mudança

“Quien dixo que la ausência causa olvido”

SONETO

Mil anos há que busco a minha estrela

E os fados dizem que ma têm guardada;

Levantei-me de noite e madrugada,

Por mais que madruguei não pude vê-la.

Já não espero haver alcance dela

Senão depois da vida rematada,

Que deve estar nos céus tão remontada

Que só lá poderei gozá-la e tê-la.

Pensamentos, desejos, esperança,

Não vos canseis em vão, não movais guerra,

Façamos entre os mais uma mudança:

Para me procurar vida segura

Deixemos tudo aquilo que há na terra,

Vamos para onde lemos a ventura.

FRANCISCO RODRIGUES LOBO
Enviado por PROF MOREYRA em 08/11/2011
Reeditado em 20/01/2024
Código do texto: T3323794
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