Autorretrato
Esta mulher que me fita do fundo do espelho
acho que não sou eu.
Mas se eu não sou ela e ela não sou eu,
então quem sou eu?
Sou todas as rugas de minha face
Sou todos os fios brancos de meus cabelos
Sou todo o cansaço de meu corpo
Sou todos os pensamentos que pensei
Sou todos os sentimentos e emoções que senti
Sou todos os sonhos que sonhei
Sou todas as experiências que vivi
Sou tudo o que deveria e o que não deveria ter feito
Sou tudo o que fiz e tudo o que não fiz.
Sou tudo isto e ainda mais,
pois sou também as rugas que a plástica levou
os fios brancos de cabelos que tingi
tudo aquilo que fingi
o amontoado de pensamentos, sonhos e sentimentos
que se escondem
em cantos escuros da memória
em pontos recônditos do coração
em pregas e vincos da alma,
alguns envergonhados, outros tristes,
mordidos de remorsos pelo que poderia ter sido
e não foi, ou foi errado.
Sou ainda
o que pensaram de mim
o que sentiram por mim
o que sonharam para mim
o que viveram por mim
o que me deixaram viver
o que me deixaram sentir
o que me deixaram sonhar
o que não me deixaram viver
o que não me deixaram sentir
o que não me deixaram sonhar
o muito ou pouco que me amaram.
Por isso olho e não me reconheço.
Porque ao me olhar no espelho
só me vejo com o olhar do momento fugaz
em que meus olhos encontram meus olhos
no fundo do espelho.
Lu Narbot
Do livro Versos ao Longo do Caminho - Campinas, 2004