AUTO DO NEGO À -TOA
Para uma possível dramatização do texto, pode-se sugerir uma roupa diferenciada ao nego à toa, (uma blusa de manga comprida de tecido cetinoso de cor vermelha e uma calça desbotada azul dando sinais de pobreza, porém frouxas para quando dançar ou qualquer movimento de rotação, seja de fácil visão o sacolejo da mesma em suas pernas. Um chapéu de palha comum e uma chinela de couro tipo franciscana), não era, longe disso, um pastoreiro tradicional, usava da vaidade de dançar com paços que insinuavam o andar de animais de rebanho em situações de alegria e espanto. Usava de uma gaita para canções alegres e cumprimentava as pessoas com muito garbo, e tinha comandos a frente do rebanho para pedir passagem, deixando as pessoas numa expectativa, que havia arte na sua sinalização, com cantos e trejeitos rítmicos.
Distinto leitor, imagine uma área verdejante de capim com uma vegetação pioneira de pequenos arbustos, e mais distante da linha da praia umas escarpas cor de telha com domínio de “cardeiros” e num pequeno vale abaixo das escarpas acompanha-se um estreito curso d’água, “correntes” por onde se ramificam, suficiente para que pequenos rebanhos de animais domésticos se aglomerem para pastar. Neste ambiente narrarei em forma de poema, o auto do Nego à toa.
O NOME DE BATISMO
Desde cedo ainda moleque,
Deu gosto a música e coisas afins,
fez do trabalho sua arte com estética,
e assim cresceu Francisco Martin.
Em meio ao rebanho seguia numa boa,
se misturando tão bem ao gado,
que logo foi chamado de nego à toa,
e aceitou o pseudônimo como agrado.
NOS CORRENTES
Os bichos, cada bicho aqui se farta,
alegria aos coices se vê,
cada grupo peregrina e se acha,
disputa de território é ver e crer.
Vou entoar pra vocês: eh! Bichô,
vão vivendo que eu vou descansar,
Nego também é gente, oh Rô!
Tem direito de pousar.
A vida segue na provável integração.
animais, nego à toa e zumbido do vento,
a paisagem na pura quietação,
mas o olheiro está sempre atento.
Verdade deva ser dita, sem intriga,
o nego era diferente, comovido,
dançava ao som do vento, na inventiva,
cumprimentava os bichos como filhos.
Havia resposta de confiança,
os bichos lhe tinham respeito,
por ele um grito ecoado era fiança,
não havia embarreiramento, desrespeito.
Apesar de algumas espécies com linhagem,
um só gesto ou canto de alerta,
a todos era uma só linguagem,
curral, todos na trilha, todos na passada.
DESDE QUE O MUNDO É MUNDO, SE TEM NOTÍCIA DE GENTE MESQUINHA, A INVEJAR A QUEM BEM SABE VIVER
Não se sabe ao certo?
preconceito a etnia,
preconceito a alegria,
preconceito a quem leva bem a vida,
com amor sem ferida.
Incorporando-se da sordidez entranhada,
inconsequentes, canalhas, invadem o território
e se sentem senhores, numa espreita,
atraiçoam o nego à toa no momento de ócio.
O que parecia fácil a três marmanjos em festa,
tornou-se um pesadelo a seu desfecho,
imaginavam que naquele lugarejo, nada se contesta...
E seguiram a maldade como se nada fosse desonesto.
Haveria alguém a reclamar de tal ação?
Que nada! Um favor eliminar tal criatura,
era só mais um desalmado negro tição,
que devia sumir do mundo, por desmesura.
O plano era descarado de pouca estratégia,
para acabar com alguém veloz e astuto,
prender o negro surrar até a dor da moléstia,
não era fácil precisavam ser robustos.
Os desalmados estavam decididos a executar o nego à toa. Por que um homem comum que se entendia bem com o patrão apesar de toda a rudeza, poderia levantar discórdia? por ser negro, por ser alegre, por ter uma mulher simples que lhe queria bem, porque dançasse sozinho se apresentando aos animais que cuidava, porque era risonho, por que um nego à toa não pode ser feliz? Não poderia em circunstância pública mostrar que era diferente com autenticidade, embora que para alguns fosse um doido alegre. Enfim, três rapazes instruídos, tiveram a sordidez de querer acabar com ele, achando que sua maneira de ser era acintosa ao vilarejo e a concepção cultural dos próprios.
OS TRÊS SEGUEM EM DIREÇÃO AO RECANTO DE VIGÍLIA NOS CORRENTES
Seguem os três sinistramente até o recanto,
apenas um leva um revolver em punho,
é ele mentor desvairado que grita instando:
ajoelha-se nego à toa vou te dar rumo.
Dito isto, com ligeireza o nego sai do sossego,
dá um passo e se arma de faca e pau de lança,
o agressor atira acertando-lhe o peito,
ainda assim, encontra força e num grande salto o alcança.
A LUTA CONTINUA - O nego à toa consegue o domínio da arma de fogo,
Com precisão com a faca atravessa o “fato”,
este tomba já no descompasso,
o outro é surpreendido com um tiro,
o terceiro tenta fugir desorientado.
A LUTA CONTINUA
O nego acerta a perna do derradeiro com a lança,
e , já agonizante olha os animais todos a salvo,
Cambaleia insinua a volta ao pasto e avança,
Mas, não resistindo despenca, vem abaixo.
Quero deixar claro ao distinto leitor, que um sobrevivente saiu capengando e seguiu rumo ao vilarejo para pedir ajuda e contar sua versão a tragédia. Esclarecerei ainda, todavia que os animais do pasto enxergaram que houve um assombro, qualquer alteração de risco que ocorria o Nego à toa entoava um canto aos animais, mas desta vez acontecera ao contrário, os animais assistiram tudo, eram o testemunho.
E se bem pensarmos mui certamente o sobrevivente ferido, pois a lança atingiu sua perna abaixo do joelho, certamente houve de relatar uma versão que colocou o Nego à toa como o franco agressor e ele e os outros dois amigos na ânsia para sobreviverem conseguiram atirar no peito dele para conter a fúria.
O desenrolar na cidade dos homens de bem, é fato que a juízo, e pouco necessário uma defesa arquitetada, qualquer parco depoimento, os dois amigos mortos e o sobrevivente se transformem em mártir, e o nego à toa num terrível psicopata. E de forma realista, de maneira alguma fantástica , faço questão de retornar com o leitor ao corpo “quedado” do verdadeiro herói, e já aqui anunciando que sem necessidade de maior estudo psicossocial, podemos entender o século XXI na transversalidade da banalização da morte, diante da falta de oportunidade aos seus filhos que qualquer solo é pátria mãe. Deste jeito, peço licença ao leitor para que com honra, possamos voltar à cena do final da tragédia, e vermos o que os animais sentiram ao ver o pastoreiro, Francisco Martin e Silva, àquele que os comandava com amor, ao chão morto. Então o leitor pode se perguntar a veracidade do fato a quem compete, ao autor ou a(s) testemunha(s) do acontecido? Devo pedir crédito que a história possa ser real e que nada se esconde ao que por mim o narrador presenciei e aos animais que ali estavam e que aqui repasso: tratava-se em massa de um rebanho de aproximadamente 25 caprinos, 50 ovinos, e uma manada de 05 éguas acompanhando um garanhão e de quebra como se diz numa linguagem mais próxima a vida que se tem, uma jumenta e dois filhotes, pois os apetrechos que o Nego à toa costumava fazer uso eram transportados por estes conhecidos como animais de carga. Mas o que interessa é o movimento pós morte do nego. Os animais se refugiaram a maior elevação do lugar, uma barreira com muitos “cardeiros” espécie de mandacaru, como forma de se acharem talvez protegidos e de lá ficaram com olhar de lamúria, como se de fato estivessem velando o corpo do pastoreiro. Espetacularmente um cabritinho foi até ao corpo dele cheirou e ficou a berrar, até que uma cabra foi junto do mesmo, e insinua a sua volta ao restante do rebanho. Bem, não é uma verdade absoluta, mas uma reflexão contundente, os animais nos levaram a entender que ainda oprimidos, mas que dado a opção de vida mínima são capazes de responder com cumplicidade a nossa poderosa forma de domínio... Até quando? Imaginemos que as atuais reservas ecológicas em um futuro promissor, estarão de fato garantindo não só por princípio, também por legalidade, o direito à vida no habitat afim, de cada espécie sobrevivente.
NINGUÉM ESCONDE NADA DE INTERESSE COMUM, SEMPRE HÁ UM REGISTRO...
HOMENAGEM AOS BICHOS E AO PASTOREIRO
Quem nunca teve a um animal um grande amor,
e que a ele fez com louvor um bem querer,
mesmo quem de coração duro se pode supor,
e não sorriu assim à toa a uma travessura qualquer?
Exemplar ainda alguém que nos mostre,
que com os bichos zelo é uma entrega,
viver mais amistosamente a quem nos socorre,
e termos gratidão ao que quase sempre se nega.
Haverá sempre um fim rondando,
oxalá que seja natural sem desventura,
sem interferência nem trazendo assombro,
deixando a vida marcada com aventuras.
De forma surpreendente? Não, de forma incisiva volto ao auto do nego à toa, pois uma semana depois do acontecido, naquele lugarejo de formação católica, na pequena igreja do lugar, o padre em sermão fala do episódio e vai tateando a história, pedindo a Deus pela absolvição da alma do negrinho que em sua opinião, apesar de ter tido uma atitude rude e inesperada, tinha quem muito o admirassem, e vai retalhando seu discurso como um juiz que busca provas para sentenciar e pressionado por olhares de incrédulos a real história do acontecido que era negligenciada naquele momento, porém nunca apagada, e esses queriam ouvir um sermão com um culpado e não de uma vítima de preconceito, e evidente, isso muito passa pela história de nossa colonização ainda tão presente nesta terra de passado escravocrata. E para os amigos mais íntimos, sobra de Francisco Martin e Silva, a sinceridade de saber que o velório dele, de fato não foi em sua casa de corpo presente, aos olhares tristes de familiares e de curiosos sórdidos ao choro de seus entes queridos, mas sim o velório digno feito pelos animais domésticos que sempre cuidou com muito zelo, e que esses o fitaram até a retirada de seu corpo do local a onde quedou.