O VELHO DA HORTA
HUMANISMO
(Verifique a contextualização, biografias, etc., no seu livro didático)
2.1. HABILIDADES
01- Analisar as origens do teatro em Portugal;
02- Comentar a sátira contida na farsa vicentina;
03- Explicar as características do teatro medieval.
2.2. OBRA
O teatro de Gil Vicente é poético. Seus personagens falam por meio de versos. Assim, veremos o Velho da Horta como se ele fosse um grande poema e analisaremos seus aspectos formais de acordo com os requisitos da nossa Proposta Curricular:
2.2.1. O VELHO DA HORTA
Personagens:
Um Velho;
Uma Moça;
Um Parvo, criado do Velho;
Mulher do Velho;
Branca Gil, Alcoviteira;
Uma Mocinha;
Um Alcaide;
Beleguins.
Esta seguinte farsa é o seu argumento que um homem honrado e muito rico, já velho, tinha uma horta: e andando uma manhã por ela espairecendo, sendo o seu hortelão fora, veio uma moça de muito bom parecer buscar hortaliça, e o velho em tanta maneira se enamorou dela que, por via de uma alcoviteira, gastou toda a sua fazenda. A alcoviteira foi açoitada, e a moça casou honradamente. Entra logo o velho rezando pela horta. Foi representada ao mui sereníssimo rei D. Manuel, o primeiro desse nome. Era do Senhor de M.D.XII.
VELHO: Pater noster criador,
Qui es in coelis, poderoso,
Santificetur, Senhor,
nomen tuum vencedor,
nos céu e terra piedoso.
Adveniat a tua graça, regnum
tuum sem mais guerra;
voluntas tua se faça
sicut in coelo et in terra. Panem
nostrum, que comemos,
cotidianum teu é;
escusá-lo não podemos;
inda que o não mereceremos
tu da nobis. Senhor, debita nossos errores,
sicut et nos, por teu amor,
dimittius qualquer error,
aos nosso devedores.
Et ne nos, Deus, te pedimos,
inducas, por nenhum modo,
in tentationem caímos
porque fracos nos sentimos
formados de triste lodo.
Sed libera nossa fraqueza,
nos a malo nesta vida;
Amen, por tua grandeza,
e nos livre tua alteza
da tristeza sem medida.
(Entra a MOÇA na horta e diz o VELHO):
VELHO: Senhora, benza-vos Deus,
MOÇA: Deus vos mantenha, senhor.
VELHO: Onde se criou tal flor? Eu diria que nos céus.
MOÇA: Mas no chão.
VELHO: Pois damas se acharão que não são vosso sapato!
MOÇA: Ai! Como isso é tão vão, e como as lisonjas são de barato!
VELHO: Que buscais vós cá, donzela, senhora, meu coração?
MOÇA: Vinha ao vosso hortelão, por cheiros para a panela.
VELHO: E a isso vinde vós, meu paraíso. Minha senhora, e não a aí?
MOÇA: Vistes vós! Segundo isso, nenhum velho não tem siso natural.
VELHO: Ó meus olhinhos garridos, mina rosa, meu arminho!
MOÇA: Onde é vosso ratinho? Não tem os cheiros colhidos?
VELHO: Tão depressa vinde vós, minha condensa, meu amor, meu coração!
MOÇA: Jesus! Jesus! Que coisa é essa? E que prática tão avessa da razão!
VELHO: Falai, falai doutra maneira! Mandai-me dar a hortaliça. Grão fogo de amor me atiça, ó minha alma verdadeira!
MOÇA: E essa tosse? Amores de sobreposse serão os da vossa idade; o tempo vos tirou a posse.
VELHO: Mas amo que se moço fosse com a metade.
MOÇA: E qual será a desastrada que atende vosso amor?
VELHO: Oh minha alma e minha dor, quem vos tivesse furtada!
MOÇA: Que prazer! Quem vos isso ouvir dizer cuidará que estais vivo, ou que estai para viver!
VELHO: Vivo não no quero ser, mas cativo!
MOÇA: Vossa alma não é lembrada que vos despede esta vida?
VELHO: Vós sois minha despedida, minha morte antecipada.
MOÇA: Que galante! Que rosa! Que diamante! Que preciosa perla fina!
VELHO: Oh fortuna triunfante! Quem meteu um velho amante com menina! O maior risco da vida e mais perigoso é amar, que morrer é acabar e amor não tem saída, e pois penado, ainda que amado, vive qualquer amador; que fará o desamado, e sendo desesperado de favor?
MOÇA: Ora, dá-lhe lá favores! Velhice, como te enganas!
VELHO: Essas palavras ufanas acendem mais os amores.
MOÇA: Bom homem, estais às escuras! Não vos vedes como estais?
VELHO: Vós me cegais com tristuras, mas vejo as desaventuras que me dais.
MOÇA: Não vedes que sois já morto e andais contra a natura?
VELHO: Oh flor da mor formosura! Quem vos trouxe a este meu horto? Ai de mim! Porque, logo que vos vi, cegou minha alma, e a vida está tão fora de si que, partindo-vos daqui, é partida.
MOÇA: Já perto sois de morrer. Donde nasce esta sandice que, quanto mais na velhice, amais os velhos viver? E mais querida, quando estais mais de partida, é a vida que deixais?
VELHO: Tanto sois mais homicida, que, quando amo mais a vida, ma tirais. Porque meu tempo d’agora vai vinte anos dos passados; pois os moços namorados a mocidade os escora. Mas um velho, em idade de conselho, de menina namorado... Oh minha alma e meu espelho!
MOÇA: Oh miolo de coelho mal assado!
VELHO: Quanto for mais avisado quem de amor vive penando, terá menos siso amando, porque é mais namorado. Em conclusão: que amor não quer razão, nem contrato, nem cautela, nem preito, nem condição, mas penar de coração sem querela.
MOÇA: Onde há desses namorados? A terra está livre deles! Olho mau se meteu neles! Namorados de cruzados, isso si!...
VELHO: Senhora, eis-me eu aqui, que não sei senão amar. Oh meu rosto de alfeni! Que em hora má eu vos vi.
MOÇA: Que velho tão sem sossego!
VELHO: Que garridice me viste?
MOÇA: Mas dizei, que me sentiste, remelado, meio cego?
VELHO: Mas de todo, por mui namorado modo, me tendes, minha senhora, já cego de todo em todo.
MOÇA: Bem está, quando tal lodo se namora.
VELHO: Quanto mais estais avessa, mais certo vos quero bem.
MOÇA: O vosso hortelão não vem? Quero-me ir, que estou com pressa.
VELHO: Que fermosa! Toda a minha horta é vossa.
MOÇA: Não quero tanta franqueza.
VELHO: Não pra me serdes piedosa, porque, quanto mais graciosa, sois crueza. Cortai tudo, é permitido, senhora, se sois servida. Seja a horta destruída, pois seu dono é destruído.
MOÇA: Mana minha! Julgais que sou a daninha? Porque não posso esperar, colherei alguma coisinha, somente por ir asinha e não tardar.
VELHO: Colhei, rosa, dessas rosas! Minhas flores, colhei flores! Quisera que esses amores foram perlas preciosas e de rubis o caminho por onde is, e a horta de ouro tal, com lavores mui sutis, pois que Deus fazer-vos quis angelical. Ditoso é o jardim que está em vosso poder. Podeis, senhora, fazer dele o que fazeis de mim.
MOÇA: Que folgura! Que pomar e que verdura! Que fonte tão esmerada!
VELHO: N’água olhai vossa figura: vereis minha sepultura ser chegada.
(Canta a MOÇA)
“Cual es la niña que coge las flores sino tiene amores?
Cogia la niña la rosa florida:
El hortelanico prendas le pedia sino tienes amores.”
(Assim cantando, colheu a MOÇA da horta o que vinha buscar e, acabado, diz):
MOÇA: Eis aqui o que colhi; vede o que vos hei de dar.
VELHO: Que me haveis vós de pagar, pois que me levais a mi? Oh coitado! Que amor me tem entregado e em vosso poder me fino, como pássaro em mão dado de um menino!
MOÇA: Senhor, com vossa mercê.
VELHO: Por eu não ficar sem a vossa, queria de vós uma rosa.
MOÇA: Uma rosa? Para que?
VELHO: Porque são colhidas de vossa mão, deixar-me-eis alguma vida, não isente de paixão mas será consolação na partida.
MOÇA: Isso é por me deter, Ora tomai, e acabar!
(Tomou o VELHO a mão):
MOÇA: Jesus! E quereis brincar? Que galante e que prazer!
VELHO: Já me deixais? Eu não vos esqueço mais e nem fico só comigo. Oh martírios infernais! Não sei por que me matais, nem o que digo.
(Vem um PARVO, criado do VELHO, e diz):
PARVO: Dono, dizia minha dona que fazeis vós cá té à noite?
VELHO: Vai-te! Queres que t’açoite? Oh! Dou ao demo a intrujona sem saber!
PARVO: Diz que fosseis vós comer e não demoreis aqui.
VELHO: Não quero comer, nem beber.
PARVO: Pois que haver cá de fazer?
VELHO: Vai-te daí!
PARVO: Dono, veio lá meu tio, estava minha dona, então ela, metendo lume à panela o fogo logo subiu.
VELHO: Oh Senhora! Como sei que estais agora sem saber minha saudade. Oh! Senhora matadora, meu coração vos adora de vontade!
PARVO: Raivou tanto! Resmungou! Oh pesar ora da vida! Está a panela cozida, minha dona não jantou. Não quereis?
VELHO: Não hei de comer desta vez, nem quero comer bocado.
PARVO: E se vós, dono, morreis? Então depois não falareis senão finado. Então na terra nego jazer, então, finar dono, estendido.
VELHO: Antes não fora eu nascido, ou acabasse de viver!
PARVO: Assim, por Deus! Então tanta pulga em vós, tanta bichoca nos olhos, ali, cos finado, sós, e comer-vos-ão a vós os piolhos. Comer-vos-ão as cigarras e os sapos! Morrei! Morrei!
VELHO: Deus me faz já mercê de me soltar as amaras. Vai saltando! Aqui te fico esperando; traze a viola, e veremos.
PARVO: Ah! Corpo de São Fernando! Estão os outros jantando, e cantaremos?!...
VELHO: Fora eu do teu teor, por não se sentir esta praga de fogo, que não se apaga, nem abranda tanta dor... Hei de morrer.
PARVO: Minha dona quer comer; Vinde, infeliz, que ela brada! Olhai! Eu fui lhe dizer dessa rosa e do tanger, e está raivada!
VELHO: Vai tu, filho Joane, e dize que logo vou, que não há tempo que cá estou.
PARVO: Ireis vós para o Sanhoane! Pelo céu sagrado, que meu dono está danado! Viu ele o demo no ramo. Se ele fosse namorado, logo eu vou buscar outro amo.
(Vem a MULHER do VELHO e diz):
MULER: Hui! Que sina desastrada! Fernandeanes, que é isto?
VELHO: Oh pesar do anticristo. Oh velha destemperada! Vistes ora?
MULHER: E esta dama onde mora? Hui! Infeliz dos meus dias! Vinde jantar em má hora: por que vos meter agora em musiquias?
VELHO: Pelo corpo de São Roque, vai para o demo a gulosa!
MULHER: Quem vos pôs aí essa rosa? Má forca que vos enforque!
VELHO: Não maçar! Fareis bem de vos tornar porque estou tão sem sentido; não cureis de me falar, que não se pode evitar ser perdido!
MULHER: Agora com ervas novas vos tornastes garanhão!...
VELHO: Não sei que é, nem que não, que hei de vir a fazer trovas.
MULHER: Que peçonha! Havei, infeliz, vergonha ao cabo de sessenta anos, que sondes vós carantonha.
VELHO: Amores de quem me sonha tantos danos!
MULHER: Já vós estais em idade de mudardes os costumes.
VELHO: Pois que me pedis ciúmes, eu vo-los farei de verdade.
MULHER: Olhai a peça!
VELHO: Que o demo em nada me empeça, senão morrer de namorado.
MULHER: Está a cair da tripeça e tem rosa na cabeça e embeiçado!...
VELHO: Deixar-me ser namorado, porque o sou muito em extremo!
MULHER: Mas vos tome inda o demo, se vos já não tem tomado!
VELHO: Dona torta, acertar por esta porta, Velha mal-aventurada! Saia, infeliz, desta horta!
MULHER: Hui, meu Deus, que serei morta, ou espancada!
VELHO: Estas velhas são pecados, Santa Maria vai com a praga! Quanto mais homem as afaga, tanto mais são endiabradas!
(Canta)
“Volvido nos han volvido,
volvido nos han:
por uma vecina mala
meu amor tolheu-lhe a fala
volvido nos han.”
(Entra Branca Gil, ALCOVITEIRA, e diz):
ALCOVITEIRA: Mantenha Deus vossa Mercê.
VELHO: Olá! Venhais em boa hora! Ah! Santa Maria! Senhora. Como logo Deus provê!
ALCOVITEIRA: Certo, oh fadas! Mas venho por misturadas, e muito depressa ainda.
VELHO: Misturadas preparadas, que hão de fazer bem guisadas vossa vinda! Justamente nestes dias, em tempo contra a razão, veio amor, sem intenção, e fez de mim outro Macias tão penado, que de muito namorado creio que culpareis porque tomei tal cuidado; e do velho destampado zombareis.
ALCOVITEIRA: Mas, antes, senhor agora na velhice anda o amor; o de idade de amador por acaso se namora; e na corte nenhum mancebo de sorte não ama como soía. Tudo vai em zombaria! Nunca morrem desta morte nenhum dia. E folgo ora de ver vossa mercê namorado, que o homem bem criado até à morte o há de ser, por direito. Não por modo contrafeito, mas firme, sem ir atrás, que a todo homem perfeito mandou Deus no seu preceito: amarás.
VELHO: Isso é o que sempre brado, Branca Gil, e não me vai, que eu não daria um real por homem desnamorado. Porém, amiga, se nesta minha fadiga vós não sois medianeira, não sei que maneira siga, nem que faça, nem que diga, nem que queira.
ALCOVITEIRA: Ando agora tão ditosa (louvores a Virgem Maria!), que logro mais do que queria pela minha vida e vossa. De antemão, faço uma esconjuração c’um dente de negra morta antes que entre pela porta qualquer duro coração que a exorta.
VELHO: Dizede-me: quem é ela?
ALCOVITEIRA: Vive junto com a Sé. Já! Já! Já! Bem sei quem é! É bonita como estrela, uma rosinha de abril, uma frescura de maio, tão manhosa, tão sutil!...
VELHO: Acudi-me Branca Gil, que desmaio.
(Esmorece o VELHO e a ALCOVITEIRA começa a ladainha):
Ó precioso Santo Areliano, mártir bem-aventurado,
Tu que foste marteirado neste mundo cento e um ano;
Ó São Garcia Moniz, tu que hoje em dia
Fazes milagres dobrados, dá-lhe esforço e alegria,
Pois que és da companhia dos penados!
Ó Apóstolo São João Fogaça, tu que sabes a verdade,
Pela tua piedade, que tanto mal não se faça!
Ó Senhor Tristão da Cunha, confessor,
Ó mártir Simão de Sousa, pelo vosso santo amor.
Livrai o velho pecador de tal cousa!
Ó Santo Martim Afonso de Melo, tão namorado.
Dá remédio a este coitado, e eu te direi um responso com devoção!
Eu prometo uma oração, todo dia, em quatro meses,
Por que lhe deis força, então, meu senhor São Dom João de Meneses!
Ó mártir Santo Amador Gonçalo da Silva, vós, que sois o melhor de nós,
Porfioso em amador tão despachado, chamai o martirizado
Dom Jorge de Eça a conselho!
Dois casados num cuidado, socorrei a este coitado deste velho!
Arcanjo São Comendador Mor de Avis, mui inflamado,
Que antes que fosseis nado, fostes santo no amor!
E não fique o precioso Dom Anrique, outro Mor de Santiago;
Socorrei-lhe muito a pique, antes que demo repique com tal pago.
Glorioso São Dom Martinho, apóstolo e Evangelista, passai o fato em revista,
Porque leva mau caminho, e daí-lhe espírito!
Ó Santo Barão de Alvito, Serafim do deus Cupido, consolai o velho aflito,
Porque, inda que contrito, vai perdido!
Todos santos marteirados, socorrei ao marteirado, que morre de namorado,
Pois morreis de namorados.
Para o livrar, as virgens quero chamar,
Que lhe queiram socorrer, ajudar e consolar,
Que está já para acabar de morrer.
Ó Santa Dona Maria Anriques tão preciosa,
Queirais-lhe ser piedosa, por vossa santa alegria!
E vossa vista, que todo o mundo conquista,
Esforce seu coração, porque à sua dor resista,
Por vossa graça e benquista condição.
Ó Santa Dona Joana de Mendonça, tão fermosa,
Preciosa e mui lustrosa mui querida e mui ufana!
Daí-lhe vida com outra santa escolhida que tenho in voluntas mea;
Seja de vós socorrida como de Deus foi ouvida a Cananea.
Ó Santa Dona Joana Manuel, pois que podeis, e sabeis, e mereceis
Ser angélica e humana, socorrei!
E vós, senhora, por mercê, ó Santa Dona Maria de Calataúd,
Por que vossa perfeição lhe dê alegria.
Santa Dona Catarina de Figueiró, a Real,
Por vossa graça especial que os mais altos inclina!
E ajudará Santa Dona Beatriz de Sá:
Daí-lhe, senhora, conforto, porque está seu corpo já quase morto.
Santa Dona Beatriz da Silva, que sois aquela mais estrela que donzela,
Como todo o mundo diz!
E vós, sentida Santa Dona Margarida de Sousa, lhe socorrei,
Se lhe puderdes dar vida, porque está já de partida sem porquê!
Santa Dona Violante de Lima, de grande estima,
Mui subida, muito acima de estimar nenhum galante!
Peço-vos eu, e a Dona Isabel de Abreu, co siso que Deus vos deu,
Que não morra de sandeu em tal idade!...
Ó Santa Dona Maria de Ataíde, fresca rosa, nascida em hora ditosa,
Quando Júpiter se ria!
E, se ajudar Santa Dona Ana, sem par de, Eça, bem aventurada,
Podei-lo ressuscitar, que sua vida vejo estar desesperada.
Santas virgens, conservadas em mui santo e limpo estado,
Socorrei ao namorado, que vos vejais namoradas!
VELHO: Óh! Coitado! Ai triste desatinado! Ainda torno a viver? Cuidei que já era livrado.
ALCOVITEIRA: Que esforço de namorado e que prazer! Que hora foi aquela!
VELHO: Que remédio me dais vós?
ALCOVITEIRA: Vivereis, prazendo a Deus, e casar-vos-ei com ela.
VELHO: É vento isso!
ALCOVITEIRA: Assim seja o paraíso. Que isso não é tão extremo! Não curedes vós de riso, que eu farei tão de improviso como o demo. E também doutra maneira se eu me quiser trabalhar.
VELHO: Ide-lhe, logo, falar e fazei com que me queira, pois pereço; e dizei-lhe que lhe peço se lembre que tal fiquei estimado em pouco preço, e, se tanto mal mereço, não no sei! E, se tenho esta vontade, não deve ela s’agastar; antes deve de folgar ver-nos morto nesta idade. E, se reclama que sendo tão linda dama por ser velho me aborrece, dizei-lhe: é um mal quem desama porque minh’alma que a ama não envelhece.
ALCOVITEIRA: Sus! Nome de Jesus Cristo! Olhai-me pela cestinha.
VELHO: Tornai logo, fada minha, que eu pagarei bem isto.
(Vai-se a ALCOVITEIRA, e fica o VELHO tangendo e cantando a cantiga seguinte):
Pues tengo razón, señora,
Razón es que me laa oiga!
(Vem a ALCOVITEIRA e diz o VELHO):
VELHO: Venhais em boa hora, amiga!
ALCOVITEIRA: Já ela fica de bom jeito; mas, para isto andar direito, é razão que vo-lo diga: eu já, senhor meu, não posso, sem gastardes bem do vosso, vencer uma moça tal.
VELHO: Eu lhe pagarei em grosso.
ALCOVITEIRA: Aí está o feito nosso, e não em al. Perca-se toda a fazenda, por salvardes vossa vida!
VELHO: Seja ela disso servida, que escusada é mais contenda.
ALCOVITEIRA: Deus vos ajude, e vos dê mais saúde, que assim o haveis de fazer, que viola nem alaúde nem quantos amores pude não quer ver. Falou-me lá num brial de seda e uns trocados...
VELHO: Eis aqui trinta cruzados, Que lhe façam mui real!
(Enquanto a ALCOVITEIRA vai, o VELHO torna a prosseguir o seu cantar e tanger e, acabado, torna ela e diz):
Está tão saudosa de vós que se perde a coitadinha! Há mister uma saiazinha e três onças de retroz.
VELHO: Tomai.
ALCOVITEIRA: A benção de vosso pai. (Bom namorado é o tal!) pois gastais, descansai. Namorados de al! Ai! Não valem real! Ui! Tal fora, se me fora! Sabeis vós que me esquecia? Uma amiga me vendia um broche de uma senhora. Com um rubi para o colo, de marfi, lavrado de mil lavores, por cem cruzados. Ei-los aí! Isto, má hora, isto si são amores!
(Vai-se o VELHO torna a prosseguir a sua música e, acabada, torna a ALCOVITEIRA e diz):
ALCOVITEIRA: Dei, má-hora, uma topada. Trago as sapatas rompidas destas vindas, destas idas, e enfim não ganho nada.
VELHO: Eis aqui dez cruzados para ti.
ALCOVITEIRA: Começo com boa estréia!
(Vem um ALCAIDE com quatro BELEGUINS, e diz):
ALCAIDE: Dona, levantai-vos daí!
ALCOVITEIRA: Que quereis vós assim?
ALCAIDE: À cadeia!
VELHO: Senhores, homens de bem, escutem vossas senhorias.
ALCAIDE: Deixai essas cortesias!
ALCOVITEIRA: Não hei medo de ninguém, viste ora!
ALCAIDE: Levantai-vos daí, senhora, daí ao demo esse rezar! Quem vos dez tão rezadora?
ALCOVITEIRA: Deixar-me ora, na má-hora, aqui acabar.
ALCAIDE: Vinde da parte de el-Rei!
ALCOVITEIRA: Muita vida seja a sua. Não me leveis pela rua; deixar-me vós, que eu me irei.
BELEGUINS: Sus! Andar!
ALCOVITEIRA: Onde me quereis levar, ou quem me manda prender? Nunca havedes de acabar de me prender e soltar? Não há poder!
ALCAIDE: Nada se pode fazer.
ALCOVITEIRA: Está já a carocha aviada?!... Três vezes fui já açoitada, e, enfim, hei de viver.
(Levam-na presa e fica o VELHO dizendo):
VELHO: Oh! Que má-hora! Ah! Santa Maria! Senhora! Já não posso livrar bem. Cada passo se empiora! Oh! Triste quem se namora de alguém!
(Vem uma MOCINHA à horta e diz):
MOCINHA: Vedes aqui o dinheiro? Manda-me cá minha tia, que, assim como no outro dia, lhe mandeis a couve e o cheiro. Está pasmado?
VELHO: Mas estou desatinado.
MOCINHA: Estais doente, ou que haveis?
VELHO: Ai! Não sei! Desconsolado, que nasci desventurado!
MOCINHA: Não choreis! Mais mal fadada vai aquela!
VELHO: Quem?
MOCINHA: Branca Gil.
VELHO: Como?
MOCINHA: Com cem açoites no lombo, uma carocha por capela, e atenção! Leva tão bom coração, como se fosse em folia. Que pancadas que lhe dão! E o triste do pregão – porque dizia:
“Por mui grande alcoviteira e para sempre degredada”, vai tão desavergonhada, como ia a feiticeira. E, quando estava, uma moça que passava na rua, para ir casar, e a coitada que chegava a folia começava de cantar:
“ua moça tão fermosa que vivia ali à Sé...”
VELHO: Oh coitado! A minha é!
MOCINHA: Agora, má hora e vossa! Vossa é a treva. Mas ela o noivo leva. Vai tão leda, tão contente, uns cabelos como Eva; por certo que não se atreva toda a gente! O Noivo, moço polido, não tirava os olhos dela, e ela dele. Oh que estrela! É ele um par bem escolhido!
VELHO: Ó roubado, da vaidade enganado, da vida e da fazenda! Ó velho, siso enleado! Quem te meteu desastrado em tal contenda? Se os jovens amores, os mais têm fins desastrados, que farão as cãs lançadas no conto dos amadores? Que sentias, triste velho, em fim dos dias? Se a ti mesmo contemplaras, souberas que não vias, e acertaras.
Quero-me ir buscar a morte, pois que tanto mal busquei. Quatro filhas que criei eu as pus em pobre sorte. Vou morrer. Elas hão de padecer, porque não lhe deixo nada; da quantia riqueza e haver fui sem razão despender, mal gastada.
FIM
2.3. TEXTO COMPLEMENTAR
“A intenção evidente da maior parte das peças vicentinas é fazer rir. Mas um riso crítico, no sentido latino de ridendo castigat mores (“rindo, castigam-se os costumes”). Durante os 34 anos em que Gil Vicente foi desenvolvendo as formas incipientes do teatro por ele criado, o motivo que as engendrava era sempre tirado da vida que acontecia à sua volta e que o seu olhar arguto registrava. Dessa sua atitude realista resultou que, mais do que qualquer outra manifestação literária na época 9 livros de linhagem, hagiografias, prosa didática, poesia palaciana etc.), o seu teatro sobreviveu no tempo como grande testemunho do que era o seu dia-a-dia, os ideais, os problemas reais da sociedade portuguesa na primeira metade do século XVI.”
(COELHO, Nelly Novaes. Literatura: Arte, Conhecimento e Vida. São Paulo, Petrópolis, 2000[p. 35]).